Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

quarta-feira, junho 30, 2004

Vassouras, 30 de junho de 2004


Querido F.,

Visitei a casa de Eufrásia Teixeira Leite. Até a adolescência, ela viveu numa chácara em Vassouras que hoje se transformou no museu Casa da Hera. Mas não foram os móveis trazidos da França, os papéis de parede, os vestidos e sapatos importados, ainda bem preservados, que me chamaram atenção. Nem mesmo a organização dos cômodos, que mostra bem como vivia uma família no século XIX, com as alcovas na entrada, para viajantes e convidados e o jardim interno (inovação na época!), para as mulheres apanharem sol protegidas dos olhares dos curiosos.
Gostei foi da história. Eufrásia era neta do Barão de Campo Belo e sobrinha do Barão de Vassouras e viveu no período em que o café trouxe poder e fortuna a donos de fazendas produtoras. Depois da adolescência, trocou Vassouras pelo agito do Rio e, quando os pais morreram, achou que aquilo era pouco e se mudou com a irmã para Paris, onde tudo parecia acontecer por aqueles anos.
Numa época em que as mulheres eram criadas para formarem famílias, Eufrásia não quis saber de se casar. Os maldosos vão dizer que ela era feia, que ninguém quis. Não achei não. Pela casa, havia pinturas aos 18 anos, aos vinte e poucos... Era interessante.
Se mudou para a França aos 23 anos (se seguisse a tendência da época, deveria ter se casado aos 15) e, na viagem, conheceu o abolicionista Joaquim Nabuco. Ficou noiva. Mas, por estes motivos da vida que só quem vive pode explicar com exatidão, não se casou. Investiu a fortuna do pai no mercado financeiro e, quando morreu, em 1930, aos 80 anos, sua fortuna equivalia a 10% do PIB brasileiro.
Eufrásia vai entrar na pesquisa. Aquela que eu comecei a fazer depois da aposentadoria, lembra?


Até...

segunda-feira, junho 21, 2004

Rio de Janeiro, 20 de junho de 2004


Querido F.,

Estava pensando hoje, enquanto tirava os sapatos e estendia os pés em cima da cama, que o tempo é relativo. Saí ontem de manhã de ônibus em direção a Vassouras. Volto hoje, um dia só fora e parece que fiquei uma semana longe da minha casa. Corri para regar as plantas, pensando que as pobres deviam estar secas e sem atenção. Depois, me lembrei que ontem mesmo eu pensei algo parecido e enchi os pratinhos até quase transbordarem. Ainda mato uma alagada.
Mas o motivo da sensação, foi a quantidade de coisas que fiz lá pelas terras dos antigos barões do café. Passei um fim de semana visitando fazendas.
Mergulhei na história, na do passado e na do presente. Isto porque, de uns anos para cá, os atuais proprietários de muitas destas lendárias fazendas resolveram receber o público em suas próprias casas. Você paga uma taxa, agenda tudo por telefone e é recebido pelo próprio dono da casa, de forma simpática, como se fosse um convidado numa tarde de festa. Alguns vêm caracterizados, com roupas de época.
Andando pelos cômodos, você vai vendo onde ficava a capela, a sala de jantar, as alcovas e o fulano desfia toda a história do barão sicrano, o primeiro dono daquele pedaço de chão. E vai explicando as modificações que fez naqueles palácios em estilo colonial (se é que isto existe), com uns vinte quartos, quatro salas e uma infinidade de janelas. Do lado de fora, você explora o terreno sozinho e vê onde ficava a senzala, o terreiro de café... Em muitos casos, há só ruínas para ver destas partes, o que, convenhamos, é ainda mais prazeroso. A imaginação vai juntando aquelas pedras todas, as que estão ali e as que já sumiram com o tempo, e você espia como era tudo, olha numa fresta para dentro do passado.
No fim do tour, na maioria das vezes, há um chá, do jeitinho que as senhoras costumavam fazer em mil oitocentos e bolinha. É, mas parece que até os dias de hoje, só a nós mesmo o programa tem um ar tentador. Só me deparei com senhoras durante o percurso e, apesar de ter ido sozinha, vi vans chegarem cheias delas.
Mas, vagando por ali, não consegui deixar de viajar um pouco na história dos donos de hoje também. Em como deve ser louco morar numa daquelas casas imensas, decoradas como no início do século retrasado. A cadeira de D. Pedro II, que já viu uns dois séculos virarem, parecendo estalar de nova. Limpa, linda, conservada. Me vi naqueles espaços também. Imaginei como ficaria a minha decoração, onde receberia os amigos para as reuniões de domingo, onde botaria meus livros e, em que cantinho, numa casa tão cheia deles, guardaria minha querida mala.
Numa das fazendas, a família inteira me esperava para a visita, o casal, o filho e a nora. Como é engraçado como, às vezes, o destino empurra a gente pra uma casa como aquela. A nora talvez gostasse da cidade, de ir ao cinema nos fins de tarde, de manter um blog na internet. Talvez tivesse passado a vida inteira morando num apartamento de dois quartos no meio da Nossa Senhora de Copacabana. Mas, por estas voltas que a vida dá, se casou com o filho de um fazendeiro e, por estas coisas que a gente faz sem saber muito bem o por quê, estava ali, vivendo na antiga fazenda do Barão de Vassouras.
Se isso tivesse acontecido comigo, o barão que me perdoasse, mas eu ia encher um canto do quarto com almofadões em tecido indiano, ia levar a Clarice, a Lygia e a Hilda Hilst para viver comigo lá dentro, nem que tivessem que, para não brigar com a decoração, serem encadernadas com capa de couro.
Caetano, Gil e os Mutantes iam ecoar naquelas paredes que tantos concertos e noites de piano já devem ter presenciado. E um carro, um fusca que fosse, ia ter que me esperar na garagem. Porque, neste caso, a família que me perdoasse, mas viagens virtuais não são o suficiente par mim.
E foi em Vassouras também, numa das visitas, que descobri um pouco da vida de Eufrásia Teixeira Leite. Mas esta história eu vou ter que deixar para depois. A chaleira está apitando na cozinha...

Até...

terça-feira, junho 08, 2004

Rio d Janeiro, 08 de junho de 2004


Qerido F.,


Ando querendo encontrar um lugar onde guardar a minha mala. Não aguento mais subir numa escada toda semana e puxá-la lá de cima do armário. Ando cansada. Não das viagens, mas de guardar e desguadar a tal da mala. Já pensei em deixá-la num cantinho, disfarçadinha que só, com uma plantinha displicente caindo por cima. Mala-estante. Outra idéia era fazê-la de mesinha de centro, com cinzeiro e livros por cima. Mala-mesa.
Descartei todas. Vamos dizer que ela não é tão pequena e nem tão bonita para ficar assim, aparente, fazendo parte da decoração. A solução é escondê-la embaixo da cama. Mas gostaria mesmo é que pudesse deixar a mala já no aeroporto, num armário só meu. Ou na casa de uma amiga com espaço de sobra para quinquilharias. Porque, assim que você desse do avião e vai para casa, ela vira um destes objetos enormes e sem função. Quero uma mala inflável. Depois de usar, esvazio e pronto, cabe numa gavetinha de mesa de cabeceira.

Até...

terça-feira, junho 01, 2004

Florianópolis, 01 de junho de 2004


Querido F.,


Não sei porque, mas o Sul do país sempre me atraiu. Acho que é porque eu tenho raízes por lá. Desde pequena eu ouço a minha avó contar histórias sobre a sua infância em Blumenau, as peripécias de uma jovem como ela pelas ruas e praças de Curitiba. Tenho que confessar que fiquei meio decepcionada quando pisei em Curitiba pela primeira vez. Não que a cidade não tenha atrativos. Lógico que tem. Mas eu imaginava outra coisa.
Hoje, depois de muitas idas e vindas, passei a descobrir os encantos de lá. Gosto principalmente da parte antiga do Centro e, é claro, me sinto atraída pelos lugares artísticos. Perto do relógio de flores tem um bequinho fofo com galerias de arte e lojas. Não me pergunte o nome, você sabe que não consigo guardar o nome das coisas. Mas agora ando melhorando, me obrigando a levar um micro bloquinho dentro da bolsa, para anotar tudo o que gosto. Comprei uma vez canecas e quadrinhos feitos com azulejos lindos por lá.
Mas isto tudo foi pra dizer que estou em Florianópolis.
Floripa. Não consigo evitar o apelido, tamanho é o meu carinho por aquela ilha.
De lá, talvez por coincidência, ou porque estou ficando velha também, gosto da parte antiga da cidade: Ribeirão da Ilha, onde dizem que Floripa começou. Tem um casario preservado numa ruazinha de pedra e uma praia calma, pequena, com uma faixa de areia estreita e muitos barquinhos estacionados. A desculpa para ir até Ribeirão são os restaurantes de ostras e mariscos. Há muitos ali. E, pelo menos os que conheço, servem tudo fresquinho e saboroso. Mas gosto de ir para simplesmente pisar num lugar onde parece que o tempo deu uma estacionada. Fiquei horas hoje por lá, sentada sozinha num destes restaurantes, Ostradamus, e vendo uma chuva forte lavar tudo do lado de fora,
Chovia. Mas a minha impressão era de que, ali, o vento tinha parado. O tempo estava estagnado. Passado, presente, tudo fica meio misturado. Não parece haver grandes diferenças e mudanças.
Ah, e as pessoas... As pessoas são outro grande atrativo da cidade. Gente simples. Tenho uma prima que morou anos na ilha e diz que a mentalidade do povo de lá era o que mais a deixava louca. Chegava a enervar. Por isso, a boba arrumou as malas e se mudou para o Rio. Diz que pensam estreito, são preconceituosos e quadrados.
Não sei. Não sei o que pensaria se morasse em Florianópolis. Mas, como turista, posso dizer que fico completamente encantada. Fui bem recebida em todos os lugares onde estive. Fiz perguntas idiotas e fui respondida com simpatia. Me meti na vida dos outros mesmo, querendo saber detalhes de suas rotinas de suas histórias. Fui atendida todas as vezes. E uma perguntinha assim, bobinha, pequena, simples, virava um papo enorme, de horas. Gente simpática.
Não encontrei porta fechada também. Explicava que estava de passagem, que tinha pouco tempo, que não podia voltar depois, e deixavam eu olhar o lugar, apreciar pelo menos um pouquinho. Aconteceu assim no Casarão da Lagoa, onde há oficinas de renda, biblioteca e exposição de arte. Aconteceu na igrejinha de Ribeirão e no moderno antiquário-bar-restaurante-galpão de restauração de móveis que abriram por lá. Isto, aliás, anda cada vez mais comum. Lugares com a cara de São Paulo e do Rio de Janeiro, no meio de Florianópolis. Acho bom, pelo menos por enquanto. A paisagem é paradisíaca, praias maravilhosas, a bela Lagoa da Conceição, a gente simpática, e os lugares antenados que fazem você se sentir, de alguma forma, conectado com o resto do mundo.
O Centro de Floripa é outro passeio gostoso. Meio tumultuado, lembrando o Centro do Rio também, com uma multidão caminhando por ruas estreitas. Mas por lá ficam os prédios históricos. E o Mercado Público, com sua falta de ordem, grãos, artigos de cozinha, bares, artesanato, objetos dos mais diferentes tipos, dos mais vagabundos aos interessantes, todos convivendo junto. Lembra um pouco as praças da Espanha, cercada por um antigo edifício. Há muitas em Madrid. Outras tantas em Bilbao.
Ai, Floripa...

Até...
Rio de janeiro, 28 de maio de 2004

Querido F.,

Sou uma andarilha. Não adianta. Podem dizer que o lugar e distante, que eu vou ficar cansada. Nao tem jeito. Se for possivel ir a pé, eu vou. E nao tenho medo nenhum de me cansar. Se isto acontecer, pego um taxi, um onibus, o metro, ora bolas.
Uma vez, numa viagem para Londres, peguei emprestado de uma amiga um guia da cidade. No fim, havia um mapa com o centro da capital inglesa. Os bairros divididos por cor. Sentia felicidade em ver que eu cruzava os quadrados mostrando as divisões a pe. Mostrava para outra amiga, orgulhosa, o percurso que tinha cumprido ao final de um dia. Em uma semana ja conhecia tudinho, todas aquelas areas. So assim eu consigo me virar num lugar. Se pego um ônibus, fico perdida. Não entendo a cidade, não consigo me situar pelas ruas.
E a verdade e que eu acho que so conheço uma cidade assim, andando.
Gosto de passear e ficar observando as pessoas na rua, o jeito de se vestirem. Admito que estico ate o pescoço quando passo na frente de uma fresta de porta ou janela abertas. Gosto de ver la dentro, quero saber como vivem, o que fazem, me colocar um pouquinho no lugar daquele individuo, saber como seria a vida na pele daquela pessoa. Meu jeito.
Andando por Londres descobri que, la, do outro lado, as pessoas são como aqui. Ja sabia, mas gosto de constatar assim, ao vivo. Se vestem igual, se portam muito parecido. Aquela historia de cabelo azul, cortes loucos. Não achei nada. Nada do que uma jovem da zona sul não usaria. Nada do que o Romulo do cabeleireiro Rush Rush não esculpisse na cabeça dos modernos daqui. E a globalização, não é?

Ai, que saudade dos acentos e pontos no lugar certo. Sumiram deste teclado.

Ate...