Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

quarta-feira, março 16, 2005

Querido F.,

Há tempos não escrevo... Confesso que estava com preguiça e que a vida andava boa, sem sobressaltos, caminhando vagarosa e gostosa. Mas hoje fiquei com vontade de abrir a boca, pegar um lápis, sentar no computador e te escrever uma carta.
Minha vizinha pulou da janela. Na verdade, nunca tinha visto seu rosto antes. Só vi hoje, de longe. Uma forma largada no chão do play, com uma mancha escura em volta da cabeça. Parece velha, uma senhora pelos cabelos prateado. Fiquei achando que devia ter escorregado, que olhava entretida uma lagarta do lado de fora do vidro, quis tocá-la, pegar entre os dedos e acabou escorregando pela janela.
A filha de minha prima estava aqui em casa. Assistiu ao rebuliço e quis saber da mãe o que tinha acontecido. Cecília explicou que uma moça de um andar de cima tinha feito uma viagem. Viagem curta. Do sétimo andar até o térreo. O que passa na cabeça de uma pessoa durante estes segundos tão fugazes. O vento correndo solto pelos cabelos. O corpo voando pela janela. Uma sensação de liberdade momentânea. Talvez estivesse rindo. Tenha batido no chão com um sorriso na boca. Talvez tenha se arrependido. Tentou segurar algum parapeito com as unhas, mas o corpo seguiu decidido seu caminho até o chão.
Foi. Acabou. Nada.
Minha vizinha se suicidou. E isto é o suficiente. Não preciso dizer mais nada.