Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

sábado, março 01, 2008

O sumiço no lago (na verdade, foi na Lagoa, mas lago ganha um ar mais misterioso)

Ando ocupada. Não preciso ligar a novela quando o relógio marca nove horas, assistir filme de suspense em algum canal da TV a cabo (é lógico que eu tenho! Por que todo mundo sempre acha que idoso não tem TV por assinatura ou computador?) ou ler a seção do jornal que traz as notícias da cidade (sem dúvida, a opção mais apavorante das três. Para dias em que você anseia por emoções fortes). Está acontecendo no meu prédio mesmo. Aqui: Copacabana, Rio de Janeiro.

Não quero concorrer com o Espinosa, do Garcia-Roza, e perder os dias andando atrás de pistas no Bairro Peixoto, mas é inevitável que me interesse. Olhar a movimentação pela janela, abrir a porta para jogar o lixo no momento exato em que conversas acontecem no corredor (coincidências fazem parte da vida!), tirar informações truncadas em conversas aparentemente inocentes com o porteiro. Me sinto, de uma hora para outra, um pouco Miss Marple, num dos livros da Agatha Christie (sim, admito que li alguns na adolescência).

É um caso que envolve cartas que chegam, apesar de ninguém saber como, morte e amor. E estes três ingredientes foram suficientes para despertar o meu interesse. Ela mora no meu andar (veja que sorte!), num apartamento de fundos. Sempre fechada, calada, de poucos sorrisos. É jovem de aparência, mas tão séria que tenho a impressão de ser mais idosa do que eu, quando divido com ela o elevador e tenho a oportunidade de, disfarçadamente (claro!), observá-la de perto.

Ele? Confesso que vi apenas duas vezes, mas nunca tinha suspeitado que fosse um escritor de sucesso. Tão simples, tão comum, sem nenhum pingo do glamour que sempre imaginei que os autores de grandes livros levassem para a vida. Seus personagens, eu conheço, têm histórias movimentadas, dúvidas profundas, vícios e passados condenáveis. Ele sempre me pareceu sem graça e, por isso, infelizmente, nunca tinha prestado muita atenção na sua presença. Andava de bermuda, tênis e regata, mas era, pra mim, como se estivesse sempre de terno, de uniforme, misturado na massa. A diferença de idade entre os dois era gritante. Trinta anos? Mais, talvez. E, quando andavam de mãos dadas, despertavam a atenção mesmo de quem nunca teve preconceitos (como eu! Ok, ok, tenho alguns... Contra homens de terno, por exemplo, não os que usam para trabalhar, mas os que valorizam o traje).

Foi num domingo de tarde, me falaram. Os dois estavam caminhando na Lagoa, roupas esportivas. Estava sol e o ambiente era movimentado, famílias, casais, crianças, gente de todo tipo andando e conversando. E os dois se sentaram num dos píeres para descansar, pernas estendidas, calmos. E, de repente, sem nenhum movimento que anunciasse a decisão, ele se levantou e mergulhou na água. Naquela água imunda da Lagoa, a mesma dos peixes volta e meia boiando, das ondas de fedor regulares, da aparência turva e lamacenta. E foi só nisso que ela se preocupou, quando, ao ver que ele demorava a voltar, resolveu sair em busca de ajuda num dos quiosques próximos.

Ninguém viu nada. E buscas foram feitas por mais de uma semana no local, com máquinas removendo o fundo, mergulhadores com lanternas e roupas a prova da podridão. Nada. Ninguém nunca mais viu o escritor por aqui, por ali, por lugar algum que fosse. Mesmo assim, depois de muito choro, roupas pretas, dias de óculos escuros, chegam recados.