Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

domingo, março 09, 2008

O dia da carta




Comecei com as palavras cruzadas. Uma chatice. Verdadeiros enigmas que me estimulam apenas a correr até as últimas páginas do livrinho atrás das respostas. Passei para a tapeçaria. Comprei uma tela aqui na esquina, alguns novelos de lã, desencavei as lições que minha mãe me dava em Petrópolis e dei início aos trabalhos. Já fiz cinco tapetinhos! Isto tudo para aproveitar o novo espaço que arrumei aqui em casa. Colado à porta de serviço, coloquei uma mesinha com cadeiras. Bem arrumadinho, com um vaso de plantas e tudo.

Foi assim, meio sem querer, enquanto desfrutava deste meu novo espaço, que descobri quando chegou a primeira carta. Era dia 5 de janeiro, um mês depois do sumiço. Saí para jogar o lixo e a vi no corredor. Achei que estava ainda mais magra e mais pálida, parecia frágil e ouvia sem se mover um homem alto e moreno dizer repetidas vezes:

- Não pode ser! Não pode ser! Por que ele faria isso? Por que mandaria esta carta justamente pra você?

E ela ouvia sem mover músculo. Ainda tentei me demorar, fingindo que a porta da lixeira tinha emperrado, mas, nada, daquela boca não saía palavra e tive que voltar para casa, com a Juma me seguindo de perto, desconfiada (até ela!) do encontro no corredor.

Me custou um bocado entender o que estava em volta daquelas quatro frases soltas. Não me perguntem como juntei a história. Tenho fontes. Só posso adiantar isso: tenho minhas fontes. Mas logo nas primeiras horas da manhã ela recebeu uma carta. Era dele. Peritos conferiram a caligrafia. Definitivamente, dele. Disse que estava embaixo da porta quando acordou, mas nem o porteiro e nem ninguém no prédio lembra de ter visto alguém entregando uma correspondência.

Isso, depois que tudo parecia resolvido. Depois de um enterro simbólico ter se realizado. Depois de a imprensa alardear o namoro secreto do escritor e do filho ter reivindicado respostas, acusado minha vizinha de assassinato, cobrado explicações em relação aquele relacionamento secreto que ninguém nunca tinha ouvido falar. Juntei os recortes de jornal com todas as declarações da família.

“- Desde que ficou viúvo meu pai nunca mais se relacionou com mulher nenhuma. Passava os dias em casa, escrevendo e lendo.” O Globo, 29 de dezembro de 2007.

“- Ninguém viu ele pular na água. As buscas se basearam apenas no depoimento dela. Mas quem é esta mulher? Onde está meu pai? O que fez com ele?” Época, 16 de dezembro de 2007.

“ – Estive com ele no dia do sumiço. Não comentou que ia caminhar na Lagoa. Não disse que estava saindo com alguém, muito menos que estava apaixonado. Estava satisfeito e só. Não me pareceu como uma pessoa que quisesse cometer suicídio” Veja, 16 de dezembro de 2007.

Tive vontade de ligar para a imprensa, de descobrir o telefone deste filho e ter com ele dois dedos de prosa que fosse. Dizer que, sim, eu já tinha visto os dois juntos. Uma, duas vezes, mas vi. Não, não pareciam tão apaixonados. Mas quem olhar a minha vizinha pela rua vai entender. Não há como saber o que sente, pensa, o que está prestes a fazer. Talvez estivesse apaixonada. Como saber? Um rosto sempre sem expressão, pra dentro, contido. Mas em uma das vezes, juro, eu vi, tenho certeza, quase certeza absoluta, de que estavam de mãos dadas. Bem dadas. Atadas mesmo.

Assim que viu o envelope, ela achou que era uma propaganda. Pegou. Não havia nada escrito em nenhum dos lados. Um envelope bege, como tantos outros que encontramos nas papelarias. E abriu sem dar grande importância. Numa folha pautada, pequena, estava um poema. A letra inconfundível e, antes mesmo de ler qualquer palavra, duas lágrimas desceram pelo rosto (Me deixem! Me deixem! Não posso imaginar duas lagriminhas? Ok, eu não vi a cena, mas elas devem ter existido!).

Achou que era um sinal. Se tinha mandado uma carta, estava vivo. Um poema. Palavras de saudade. Versos de quem sente a distância. Eram palavras dele. Embaixo, uma frase que ainda não consegui entender direito: “Junte todos. São o meu presente para você”.

Desde então, todo dia 5, a cena se repete.