Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

segunda-feira, março 27, 2006

Tudo e nada

Querido F.,
... não se avexe não. amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada... A música vinha da vitrola do vizinho, que chegou de férias hoje de manhã com a família. Sim. Eles ainda têm vitrola, com uma pilha de discos de vinil de cobrir uma estante do chão ao teto. E, quando a agulha toca cada um deles, um som cheio de um ruído reconfortante entra aqui dentro de casa. E vai invadindo cada cômodo, até chegar em mim e me encher de uma saudade danada.
E é só fechar os olhos para me ver de manhã, abrindo uma janela de madeira com a pintura descascada. Do outro lado da rua, uma fileira de casas coloridas. No meio, um risco de terra batida para servir de passagem pros carros. E, quando alguém dizia Centro, tava falando das ruas casadas de Petrópolis. História significava andar de pantufas pelos corredores do Museu Imperial ou subir no ziguezague da escada espremida da casa de Santos Dummont.
De tarde tinha bolo de fubá, brigadeiro de colher, queijo-quente com um queijo amarelo escorrendo pelos lados, de fazer qualquer médico de hoje arregalar os olhos. E a diversão era apoiar os cotovelos na janela e fingir que via os passantes, enquanto o pensamento ia longe, num futuro movimentado e cheio de gente. Uma gente que fazia tanta, mas tanta coisa, que o dia pra eles era apertado. O meu, sobrava pelos cantos.
E diziam que em Copacabana dava pra ir andando até o mar. Os turista desfilavam no calçadão. E era esta mesma calçada, exatamente a mesma, que falava inglês de dia e virava cama de noite pruma penca de pessoas sem teto. Rua e casa num mesmo lugar. Prédio com escritórios e consultórios e outros com apartamentos para famílias inteiras, pras pessoas morarem e fazerem tudo a pé, resolvendo qualquer história, das mais cabeludas às mais sem importância, numa caminhada de dez minutinhos. E era lá que eu queria estar. Onde as coisas aconteciam. Onde, numa virada de olho, eu podia ver como andava o mundo.
E era pensamento de menina de treze anos, num fim de tarde de uma rua parada do interior, do interior, do interior de Petrópolis. Mas é claro que as idéias vinham junto com a lembrança do João na sala de aula, do professor de português, dos deveres de casa, da fofoca da Marina, da pipoca quente e do filme da sessão da tarde.
E eu vim. E um dia descobri que o supermercado da esquina tava com uma promoção para o iogurte Danone. Num outro, cheguei podre do trabalho e fui dormir sem jantar. Descobri, num sábado de tarde, que ir ao cinema de Havaianas tava na moda e fumaça de cigarro tinha virado sinônimo da falta de educação (era um charme na minha época!). Numa quarta, me apaixonei por um menino bonito, de sorriso largo. Num domingo, passei uma tarde chuvosa inteirinha lendo em casa. E conheci você F. e ganhei a Juma e fiquei amiga da Irene. Pintei o cabelo de louro e as unhas do pé de vermelho em janeiro. Um dia de manhã, fui na esquina comprar os jornais e vi um homem atropelado. E acordei no meio da noite com o barulho de tiros, mas descobri, pouco depois, que era sonho. E tantas vezes arrumei as malas para conhecer como viviam os outros, nos outros lugares. Numa sucessão de segundos, minutos e horas, que, todos juntos, formaram 52 anos...não se avexe não. amanh

terça-feira, março 21, 2006

Terezinha...

Querido F.,
Tem tempo. É... bastante tempo. Mas sempre me lembro desta história. Hoje, me veio de novo, enquanto a televisão mostrava um filme choroso na sessão da tarde. Foi durante uma festa de casamento em Paraty. As madrinhas saindo da igreja com os sapatos na mão, porque nenhuma tinha levado muito a sério esta história de calçamento em pé-de-moleque e todas tinham teimado que conseguiam se equilibrar em saltos, mesmo com o alto e baixo das pedras. E fomos todos para um restaurante, sem os sapatos mesmo, porque ninguém ligou de calçar os saltos depois, quando os pés já pisavam em tábuas de madeira.
Uma bandinha tocava músicas alegres e pratos saíam da cozinha para as mesas, com uma fumacinha de quentura em cima de cada um deles. Fiquei debruçada pela janela, olhando espantada para aquela cidade que parecia cenário de novela. Uma corrente separava uma teia de ruas de terra batida e casas sem graça, de um trecho com casario antigo e preservado, chão ondulado de pedrinhas e cheiro de mar pelos cantos. Sinhá Moça poderia bem virar uma esquina daquelas, mas quem me encarava era um senhor arrumado, de seus mais de setenta, parado na rua, de frente pra festa.
- O que tá acontecendo aí dentro? Moro aqui na cidade... Fiquei querendo saber o que era...
- É um casamento. Da Rose e do César.
E a resposta não pareceu suficiente, porque o olhar continuou em mim. E achei que ele queria era saber quem era a Rose e como ela e o César tinham se conhecido e alguma coisa assim, mas só depois notei que a comemoração lá dentro não era o motivo, mas o pretexto.
- Você se parece muito com uma ex-namorada minha: a Terezinha... foi o amor da minha vida....Se tivesse a sua idade, ia querer namorar você.
E as mãos enrugadas tocaram as minhas. E ele sorriu. Disse que era bonito o que via e foi embora. Ri de volta, achei engraçado, aliás, engraçadíssimo. Comentei com os presentes. Mas por dentro me perguntava porque afinal de contas ele tinha deixado a Terezinha ir embora. Não era o tal amor da vida dele?
E até hoje encasqueto nesta cena. E me pergunto se é só depois, lá pelo fim da vida, que descobrimos quem foi o tal do amor importante? E fico achando que, se é que ele existe (e logo decido tirar o se da frase, porque deve mesmo existir. Talvez não O, mas UM importante), muita gente deve ter deixado ele passar. Num surto de racionalidade, de emoções pensadas, motivos pesados, deixar a pessoa se perder pela vida, contando que talvez o futuro pudesse juntar novamente. E fico pensando que talvez o tal do amor não tenha nada a ver com uma história comprida, mas com um sentimento forte, que a gente fingiu que não viu e seguiu adiante, achando que era o certo a fazer no momento. E que isso não tem nada a ver com pessoas casadas e romantismo em excesso também, mas com histórias que precisavam ser vividas e foram deixadas pra trás.
E, hoje, tantos e tantos anos depois, no meio das lágrimas por causa de um filme bobo e sem graça, lá estava eu neste caso novamente. Terezinha. Olhei pra trás e fiquei tentando achar o meu no meio de tantas histórias vividas. Não consegui. Ou fingi que não vi mais uma vez. Talvez ainda precise de mais alguns anos. Talvez, talvez, talvez...

Até,
M.

sábado, março 11, 2006

Alguma coisa acontece...

Querido F.,
Meu vizinho assina o Estado de São Paulo. A família deve estar viajando, porque a pilha aumenta cada vez mais ao longo da semana. Tenho pena. Desperdício aquele monte de informação amontoada, pronta para ser jogada fora. Não acredito que alguém chegue disposto a ler aquela montoeira toda depois de uma semana de férias onde quer que seja. Então, resolvi pegar um exemplar ou outro para dar uma espiada. Coisa rápida. Depois eu coloco tudo de volta naquela torre de papel. Foi assim que me deparei com um encarte inteiro dedicado à Bienal do Livro de São Paulo.
Não gosto muito de bienais. Elas servem pra você fazer compras, voltar cheia de sacolas com livros em desconto. As palestras são tão disputadas que é preciso passar horas na fila para avistar, de um canto espremido, uma personalidade das letras falando de um assunto qualquer. Cortei as tais da minha vida. A Flip é a única festa literária que não falto. Vou feliz para Paraty todos os anos. Mas acontece que, desta vez, movida pela desculpa do encarte, fiquei tentada. Arrumei uma mala pequena, dois dias só, deixei Juma aos cuidados do porteiro, e lá fui eu.
Minhas sandálias percorreram grande parte dos vinte mil metros quadrados descritos no jornal. Não me pareceram tanto assim. Estandes e mais estandes com livros empilhados. Comprei vários. Impossível resistir a um exemplar de “Grande Sertão: Veredas” com 40% de desconto. O título está completando 50 anos e nunca esteve na minha prateleira até então. Tava na hora.
Saí feliz do Anhembi. Mas o contentamento acabou na mesma hora em que entrei no táxi. Cidade espalhada é São Paulo. Me sinto pequena, perdida naquele monte de ruas e prédios sem sentido, intermináveis. Os restaurantes podem ser maravilhosos, a comida deliciosa, as lojas com roupas irresistíveis, mas tudo o que sinto quando cruzo suas ruas é vontade de ir pra casa. Tenho a impressão de que a cidade é dividida por blocos e que cada um dos moradores só freqüenta um número limitadíssimo de quadras e ninguém se importa com o pedaço dos outros. São Paulo me deixa com um vazio por dentro.
Marquei a passagem para a manhã seguinte. Estava de bom tamanho e, quando o despertador tocou, levantei aos pulos. Feliz. Congonhas me pareceu acolhedor e, cada vez que Rio de Janeiro piscava nas telas de chamada, uma coisa vibrava aqui dentro. Casa. E lá fui arrastando minhas malinhas pelo saguão, uma só com livros. Na entrada para o embarque, dois taxistas descansavam do lanche observando os passantes.
_ Essa é carioca.
_ Do Rio?
_ Com certeza.
Falavam de mim e, no primeiro momento, achei que estava mal-vestida. Mas foi só olhar para os lados com mais atenção para notar que todos desfilavam casacos, calças compridas e sapatos fechados. Só eu com vestido de alça e sandália rasteira. Não adianta. Para mim, São Paulo vai ser sempre só um endereço para um compromisso marcado na agenda.
Até,
M.

sábado, março 04, 2006

Bonecas russas

Querido F.,
Alberto me convidou para assistir a uma maratona Odeon. Não estamos mais juntos, mas, quando o amor acaba e a pessoa continua querida, conseguimos ser amigos. Claro que não agüentei os três filmes seguidos, não subi para ver o DJ tocando no segundo andar e apenas gostei de saber que, às 5h, eles servem café e bolo para os sobreviventes da noite. Com certeza, não seria uma delas. Sou uma senhora e, apesar de não dormir cedo, gosto de passar as madrugadas na minha casa. Assistimos somente à primeira sessão, “Bonecas russas”, continuação de “Albergue espanhol”, com mesmo diretor e elenco. A história fala novamente de relacionamentos. Estamos sempre a procura daquela bonequinha russa, a do miolo, a principal. Depois dela, mais nada. Acabou a busca. Encontramos o amor. Mas, surpresos, descobrimos que há sempre mais uma, numa sucessão de relacionamentos que não parece acabar nunca. Cansativo. Difícil. E lá vem Xavier aparecendo na tela, com trinta anos agora, morando de favor na casa de amigos, trabalhando em bicos a espera de uma editora que publique o seu livro, colecionando uma série de namoros que terminaram em desastre. E as nacionalidades se misturam, as fronteiras são cruzadas com facilidade. Ele acorda em Paris, dorme em Londres, viaja para a Rússia. Os amigos vêm da Itália, Espanha, Inglaterra, França... As culturas são diferentes, os idiomas idem, mas eles se entendem, conseguem se comunicar apesar de toda a dificuldade, das muitas imperfeições e ruídos. Vão seguindo. E o irmão de Wendy supera a maior das adversidades. Trabalhando como iluminador, conhece uma bailarina de uma companhia russa de balé clássico. Ela não fala nem uma palavra de inglês, ele não entende nada de seu idioma enrolado. São só sorrisos, acenos, mímicas. O grupo vai embora, o rapaz se matricula num curso para aprender a língua. Um ano passa, até que ele a procura de novo. Acha, claro. E, sim, há um casamento. Mas será que ela é a última bonequinha russa? O tal amor verdadeiro? Aquele do para todo o sempre, até que a morte os separe e coisa e tal? O filme acaba antes de a gente descobrir se, depois da bailarina, o menino se apaixona por uma dançarina de cabaré ou uma trocadora de ônibus. Olhei para o Alberto sentado ao meu lado. Qual será o próximo?
Até,
M.

quarta-feira, março 01, 2006

Cadê a minha Marie Claire?

Querido F.,
Durante todo o carnaval, recebi a assinatura da Marie Claire na porta de casa. Um rapaz louro, com cabelo de cachinhos vinha me entregar a revista todos os dias. Uma promoção para que pudéssemos conhecer a publicação e, a cada manhã, chegava uma diferente. Desta forma, li novembro, dezembro, janeiro e fevereiro em quatro dias. Hoje, quarta-feira de cinzas, preparei meu café e fiquei esperando a campainha tocar. Nada. O relógio passou das dez para as onze, pulou para o meio-dia e já vem marcando duas e meia. Nada. É claro que eu estava gostando de me espalhar no sofá e explorar outros cantos do mundo, outras histórias e fotos e mais fotos e fotos em cada página. Mas o que eu queria mesmo era ver o sorriso do rapaz pelo olho mágico, a mão estendida decorada com um anel de prata. Me apego. Sinto falta. Devia morar no interior, porque não me acostumo com o ir e vir constante da cidade grande. Fico presa aos pequenos detalhes e sofro com a falta que me fazem nos dias que seguem. Me pego imaginando por onde andam os dedos com o anel de prata pendurado, para que cantos e rostos o sorriso aparece. Sabia que era uma promoção por tempo limitado e nem por isso pensei em fechar a porta e ficar no quarto ouvindo a campainha tocar e fingir que não tinha ninguém em casa só por causa do prazo de validade tão curto. Mas uma parte de mim se espanta. Quer reter os momentos no tempo e fica imaginando o que pensava, por onde anda, que outras palavras saem daquela boca além de bom dia. A outra grita que a vida é assim mesmo. Que já estou há 52 anos por aqui e é preciso se acostumar com esta história. Juma me chama para passear. Pula de um canto para o outro com a coleira na boca. Lá fora está um sol bonito e o mormaço entra pela janela pedindo uma roupa fresca e um chapéu protegendo o rosto. Vou descer agora.
Até,
M.