Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

domingo, abril 15, 2007

procura-se um verso desesperadamente

Uma vez, quase escrevi o verso perfeito. Uma frase só, mas perfeita. Não tinha a ver com métrica, rima ou nada relacionado à forma. Me refiro a idéias. Bombástico e sutil ao mesmo tempo. Surpreendente e simples na medida certa. Sim, teve uma época em que eu escrevia. Chegava a virar noites inteiras preenchendo páginas com a letra quadrada e antiquada da minha Olivetti. Mas, deste período, só ficou na minha cabeça a cena desta noite. A frase brotando, quase pronta e um barulho de chinelas batendo ao longe. O coração disparado, lutando com pressa pras palavras chegarem logo, e o arrastar das chinelas vindo mais depressa que as sílabas, cada vez mais perto. E minha mãe surgiu na porta do quarto com sua camisola azul de listrinhas e, sem perguntar nada ou deixar espaço pra defesa, desligou a luz da luminária:
- Isso são horas? Já pra cama. Amanhã não acorda pra escola.
E o verso se perdeu para sempre.

Pensando bem, não era a minha mãe. Sim, sim. Mas o meu pai. Ele e seu estilo seco. Em vez das chinelas atoalhadas da mãe, o calçado de couro do pai. Inclemente, forte, quase acordando a casa intera com as batidas no chão de taquinho. E, sem deixar espaço para argumentações, me olhou da porta.
_ Magnólia, já está na hora de dormir.
E eu fui e obedeci, olhei para o lado e a escrita foi dormir junto e creio que não se levantou até agora.

Pensando bem, talvez isso não tenha acontecido. Talvez cena mais ou menos assim pertença a um poema chinês que Kafka endereçou a Felice Bauer para justificar encontros que nunca saíam do papel. Ou talvez eu estivesse lendo uma das cartas de Kafka quando o verso me bateu na cabeça, inacabado, mas quase presente. E um pico de luz fez a energia do prédio cessar e, sem poder anotar as idéias, esqueci a arrumação das palavras. Não importa agora.