Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

domingo, agosto 13, 2006

Flip

Querido F.,
Achei que ainda era jovem. E na quinta de tarde, lá estava eu descendo de um ônibus na rodoviária de Paraty. Duas mochilas nas costas e um mapa, desses de Internet, explicando como chegar na pousada que eu tinha reservado. Flip, né? Não dava para faltar.
Desci feliz, animada, ignorando o peso em cima dos ombros. Respirando fundo e achando tão bom esta história de estar sozinha. Uma liberdade boa. Pela primeira vez, ia poder assistir ao que quisesse. Uma palestra, duas, quinze, sem nem um resmungo ou um olhar torto na minha direção. Mostrei o papelzinho para o primeiro jornaleiro que avistei. Os olhos do rapaz analisaram o desenho, passaram para mim e se demoraram, percebi, nas malas que estavam nas costas:
- A senhora vai a pé?
Ia. E ele me explicou que eram, para um jovem (não o meu caso), de passos largos (também não), com muita disposição (idem, idem), mais ou menos uns vinte minutos de caminhada. Achei que os paratienses deviam ser exagerados. No mapa parecia tudo tão pertinho... Quem mora em cidade pequena deve ter outras referências e achar que ali na esquina já é uma distância pra lá de grande. Estou acostumada a andar. Gosto de caminhadas longas. Eram cinco e meia e eu não tinha pressa. Parei para tomar um café, segui para a Tenda dos Autores. Peguei um programa das palestras, sorri para rostos conhecidos, perdi tempo olhando um grupo de ciranda no meio da praça. Delícia. E lá fui eu, já um pouco incomodada com as malas, deixar o peso na pousada, disposta a assistir a palestra das 19h.
E os pés foram andando, andando, andando e o desenho, que no papel parecia tão miudinho, tudo pertinho, foi espichando de uma forma impressionante.
- Ih, ainda falta. A senhora tem certeza de que vai caminhando?
E lá ia eu.
- Tem um trechão sem luz na rua. Mas...
E eu continuava. E a noite chegou. E passei por um trecho meio escuro. Achei que era o tal. Moleza. Pedaço em penumbra, que já se via luz adiante. Há! Fácil! Essa moça não sabe o que é escuro!
E fui, fui, fui. Andando, andando, andando. E vi, mais na frente, outro trechinho sem luz. Um pouco maior. Devia ser aquele, então.
Não era. De repente, veio uma curva e não se via mais nada. Nada mesmo. Olhava para os meus pés e eles estavam perdidos no preto. Ouvia algumas bicicletas passando. Só o barulho. Alguém abriu um celular e apareceu uma luz azulada flutuando no espaço. Breu. Mato e estrada. Um carro passando vez ou outra. Me imaginei nas páginas policiais do dia seguinte. Ou atropelada por um carro desavisado. Fiquei em pânico. Se fosse filme americano, neste momento, um rapaz passaria do meu lado sorrindo, pegaria na minha mão, levaria as malas e, quando chegasse na porta do hotel, eu ia olhar pro lado e ver que não tinha ninguém.
De repente, a solidão, tão boa, tão libertadora, me pareceu perigosa. Pensei em ligar pra você até. Se acontecesse alguma coisa comigo, pelo menos alguém ia saber onde eu tinha sumido. Não liguei. Não apareceu menino-espírito-bonzinho pra me acompanhar, nem um carro para dar carona. Mas eu cheguei. Uma hora depois.
Na piscina, Uzondinma Iweala e o irmão, Okechukwu, opinavam sobre como o artista, para escrever algo de qualidade, precisa deixar o seu mundinho confortável e olhar para o outro. Adélia Prado caminhava mirando florzinhas no chão e Ali Smith conversava com a namorada sobre a programação do dia. Essa parte dos autores eu inventei, é claro! :-)
Mas a pousada era boa. E a promessa das palestras, da movimentação na cidade, dos dias de descanso me animaram novamente. E esse era só o primeiro dia...
Até,
M.