Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

sábado, setembro 22, 2007

Variações sobre o mesmo tema


Comentei com a Sheila a minha campanha e eu tenho a impressão de que ela deixou escapar a história para o Seu Zé, meu porteiro, porque, de repente, passei a receber bolos e bolos de bilhetes e cartas de pretendentes, de pessoas que não me conhecem, que nunca viram o meu rosto. Imagino que devem ter achado a história engraçada, curiosa, e resolveram participar, mandando não apenas suas próprias intenções, mas enviando fotos de pais, tios e avôs (avôs? Quanta audácia!).

Num mural na cozinha prego enfileiradas as fotos que recebo. Outro dia descobri porque ninguém parecia se destacar naquele painel e, apesar do número sempre maior, ele ia ficando cada vez mais homogêneo. Notei que 80% dos homens vestiam terno na fotografia! Com gravata e tudo. Mas por que será que eles acham necessário o traje? Será que passa idéia de seriedade? Em mim, o efeito é este mesmo que falei: me parecem todos iguais, de uniforme, um painel composto de dezenas de fotos da mesma pessoa.

- Magnólia, mas que quantidade, hein? Já encontrou algum pessoalmente? – Me perguntou a Sheila, no chá que tomamos ontem aqui em casa.

- Não... Tudo tão parecido, não é? Cabelo grisalho, terno escuro, gravata... Acho que vou escolher pelo cachorro. Por enquanto, nada adequado. Só pastor alemão, rotweiller, pitbull. Imagina?

- A Juma não tem estirpe! Vira-latas. Tem que aceitar qualquer um.

- Mas como qualquer um? Para ficar com qualquer um eu deixo o rádio ligado na sala sintonizado na CBN. Pronto. Gente falando comigo o dia todo. E compro um bicho de pelúcia pra ela que fale au-au. Cada uma que você tem, Sheila. Onde já se viu?
E ela ficou encantada com uma figura de terno cinza e gravata abóbora. Cara de estrangeiro. Olho azul piscina.

- Mas que graça este! Cristian. – e consertou rápido, meio envergonhada - Ou será Christiãn? Ou Christian, com sotaque americano?

E notei que temos esta mania estranha da busca pela pronuncia perfeita. Na França me chamariam de Magnoliá sem culpas. Na Inglaterra, de Megnôlia. E aqui, esta vergonha do sotaque do português impresso no nome. Bem, mas por via das dúvidas, tirei o Christian da lista. Sheila levou a foto embora quando foi pra casa. Talvez ela ligue.

domingo, setembro 02, 2007

Procura-se um amor que tenha um cachorro

Comecei a campanha hoje de tarde e a Juma já está interessada em um dos pretendentes. A história toda veio meio de repente. Acordei e fazia frio aqui em casa. Olhei para o despertador e ainda estava cedo, muito cedo, e a vontade de dormir mais um pouco brigava com o arrepio que subia pelo braço. Gelado. Me senti ainda criança, em Petrópolis, presa na cama pelas cobertas, enquanto o despertador gritava, chamando para a escola. E pensei que seria bom se tivesse alguém do lado pra buscar no armário do corredor mais uma manta para aquecer a cama.

Depois, veio o café da manhã. Sem querer, arrumei a mesa com duas xícaras e fui botando tudo aos pares ao lado: duas facas, dois garfos, dois pirezinhos. Meio envergonhada, espantada com a iniciativa de meus próprios braços, guardei a sobra de volta na despensa. O relógio andou mais um pouco e passei a achar a casa grande e fiquei horas discutindo com a Juma uma notícia que tinha lido no jornal. Depois disso tudo, senti que estava na hora de preencher a casa com mais uma pessoa.

Resolvi iniciar a busca olhando pela janela mesmo e vi logo, na banca de jornais, um senhor muito do bem apessoado. Já tinha encontrado com ele pela vizinhança. Agora, estava de blusa quadriculada, daquelas de botãozinho (não gosto muito do modelo, mas não posso começar assim já tão exigente), calça comprida e um tênis branco (acho que era tênis. Com a distância, não consegui ver os detalhes direito). Mas o rosto era simpático que só vendo. Gostei.

Decidi que ia descer também, comprar uma revista na banca ou algo assim. Olhei para ele de novo. O que poderia causar boa impressão? Veja, Marie Clarie, Uma? Talvez fosse melhor comprar uma Caras mesmo e deixar de fazer tipo. E quando já ia pegar a bolsa para descer, vi a Juma. Me olhava de esguelha sem se mexer, mas entendi tudo no mesmo momento. Se sentia sozinha também. Foi quando decidi: o pretendente precisa ter um cachorro!
Voltei para a janela e a Juma, animada, se aninhou logo ao meu lado, com o focinho colado no vidro. O primeiro poodle que passou pela rua ela já abanou o rabo e olhou para mim com aprovação.

- Este não, Juma. Um menino! Um menino! Não seja afobada. Temos tempo. Logo aparece outro.

sábado, agosto 04, 2007

Sinopse

Medos privados em lugares públicos
“Coeurs” (França/Itália/..., 2006)

Drama (talvez nem seja tanto). E o filme começa com uma das personagens visitando um apartamento para alugar. Um dois quartos apertado em Paris, como a maioria dos apartamentos por lá (Não que eu saiba. Nunca fui. Os amigos é que contam nas cartas). E, justificando sua insatisfação com o tamanho dos cômodos, ela prova ao corretor que o proprietário na verdade dividiu o único quarto em dois. E vemos o seu braço entrar no vão entre a janela e a parede e sair do outro lado.

- Vê? Uma única janela. A parede divide a janela em dois. Originalmente, havia apenas um quarto amplo.

E ela continua (não me cobrem fidelidade nos diálogos. Não tenho a memória tão boa assim):

- O que acontece quando o dono de um dos quartos abre a janela e o outro fecha? Nada. Não tem jeito. Ou os dois morrem congelados ou os dois ficam abafados aqui dentro.

E o longa continua mostrando sua seleção de personagens. Isolados em salas, bares, apartamentos. Todos solitários. Mas, vez ou outra, para surpreender, a câmera sobe e, então, nós, espectadores, podemos ver. As paredes que separam os ambientes não vão até em cima, não encostam no teto. Os personagens estão ligados pelo mesmo espaço, separados por divisórias ilusórias. É possível transpor cada uma delas, mas eles acreditam que, por algum motivo, precisam continuar onde estão e ficam.

O cenário é como a solidão que o filme estuda. Há algo que liga a todos. Os mesmos medos, anseios, esperanças, alegrias, sofrimentos. Como a janela do início: não há como fugir, o frio ou o abafamento é o mesmo. Apesar disso, os personagens terminam como começaram. Sim, acaba assim mesmo. É... contei o final.120 minutos. Livre.

quarta-feira, julho 18, 2007

Longe de casa


Fiquei numa fila quilométrica durante a Flip, tentando pegar um autógrafo verdadeiro de J.M.Coetzee. Sempre achei uma besteira esta história de ter um livro assinado na estante de casa. Para quê? Qual a diferença? Na verdade, não quero saber absolutamente nada da vida dos escritores que admiro. Quando leio um livro, tenho a impressão de que o nome impresso na capa não se refere a uma pessoa de carne e osso. Não me interesso em saber se o autor acorda todo dia de manhã e come queijo-quente no café. Se tem a mania de organizar sua escrivaninha com esmero antes de cada dia de trabalho. Tenho curiosidade em relação à obra e ao universo que se abre ao virarmos cada página. E ponto. Nada mais.

Mas Coetzee subiu no palco silencioso, recitou uma introdução ensaiada sobre a obra que ia ler para o público. Com voz pausada, calma, leu trechos de seu novo livro e foi só. Gestos estudados. Fiquei com vontade de olhar ele bem no olho e a assinatura na primeira página serviu de desculpa. Fui.

Ele me recebeu com um sorriso, contido, como tudo mais. Rabiscou seu nome e olhou pra mim com riso igual ao primeiro, sem mostrar os dentes. Os olhos se tornaram expressivos, apesar do rosto de pedra. Tive a impressão de que ia falar alguma coisa, que as palavras estavam subindo pela garganta, mas por lá ficaram e saí com o exemplar embaixo do braço e a certeza de que eram tantas as histórias que criava que não tinha sobrado mais nada para viver de verdade. Uma vida que só existia na imaginação.

Depois, na orelha do romance, vi que ele tem mais ou menos a mesma idade que eu. Será? E descobri que morava não sei onde e que lecionou em tais e tais lugares. Não pode ser! A partir de então, me dediquei a procurá-lo pelas ruas de Paraty. Queria flagrá-lo se movendo de improviso, numa situação inesperada.

Avistei Coetzee no domingo de manhã. Levei um susto. Caminhava pelas ruas de pedra quando percebi que o escritor passava quase ao meu lado, o mesmo rosto da véspera. Os mesmos olhos expressivos e a mesma boca muda. Mas, de repente, tive a impressão de que perguntava: Quando me cumprimentarem, o que respondo?

Antes de pegar meu ônibus, vi mais uma vez. Uma cabeça branca saindo de um café. Foi parado por uma senhora, uma fã provavelmente, que lhe dirigiu palavras que não consegui escutar. Coetzee ficou parado olhando, perplexo, e, depois de alguns segundos, tirou de dentro seu sorriso sem dentes e inclinou a cabeça de leve.

Inadequação. Deve ter sido esta a palavra que ficou entalada na sua boca na noite de autógrafos. Talvez, sentisse falta de casa.

segunda-feira, julho 02, 2007

uma história, mais uma história...

Nem olhei as prateleiras e fui direto no atendente. Queria o primeiro livro autobiográfico escrito pelo Coetzee, Cenas de uma vida, editado pela Best Seller e esgotado há tempos por aqui. Tinha. Nem acreditei. Tinha! Depois de uma peregrinação por dezenas de sebos da cidade, achei. Fui pra casa com aquela sensação de quem ganhou brinquedo novo. Quarta-feira agora começa outra edição da Flip e o cara vai estar em Paraty. Queria ler antes da festa, levar para ele autografar depois da palestra.
Li num dia, mas passei outro inteiro só tentando decifrar os garranchos que alguém deixou no topo de algumas páginas. Logo no começo, descobri, estava escrito num canto: “o que é ser normal?” Percorri a página inteira pra tentar entender e, naquele ponto da história, o Coetzee menino estava tentando imitar os colegas no colégio. Sofrendo por não saber os códigos que devia seguir. E, por mais que se esforçasse, inadequação era a única coisa que encontrava.
Mais algumas folhas pra frente e outra anotação, desta vez em letra de imprensa: “memória ou ficção?” E entendi que ela se referia ao estilo narrativo que o autor escolheu. Uma autobiografia toda feita em terceira pessoa. Ele conta suas memórias como quem fala de outro. Talvez fale mesmo. Quem disse que um adulto pode lembrar tintim por tintim da sua rotina aos dez anos?
Mas o que mais me intrigava não era decifrar as interpretações que alguém tinha feito, tentar descobrir como cada trecho tinha tocado este ser, o que chamava atenção em cada parte. Mas, sim, quem era este leitor. Eu não era a primeira a percorrer aquelas páginas. E, tentando imaginar este outro, ia criando uma segunda história na cabeça. Estava diante de um livro duplo. Dois romances em um.
Acho que era homem. Letra sem capricho, seca, cheia de ponta. Imagino que era jovem e que ganhou o livro de presente. Olhou para a capa curioso. Relato de um escritor da África do Sul, contando as primeiras dúvidas e questionamentos de sua infância. Acho que leu com calma, aos poucos, anotando os pontos pra não esquecer mais tarde, sentado em alguma cadeira de praia, baixando o livro e fixando o olho no mar enquanto pensava nos trechos da história. Se tinha gostado? Sim, tinha, tinha. Mas porque se desfez do livro, então? Não faz muito sentido alguém perder tanto tempo anotando nas bordas para, mais tarde, deixar o exemplar em alguma prateleira de sebo.
Virei a capa e fiquei olhando o título impresso bem no centro da primeira página. Com uma caneta preta escrevi em inglês:

Um lugar pro coração pousar.
Um endereço que freqüente sem morar.
Ali na esquina do sonho com a razão.

Não me dei nem ao trabalho de inventar algo original. Marisa Monte cantava os versos aqui na casa do vizinho, enquanto eu copiava apressada, tentando acompanhar sua fala. Mesmo assim, embaixo das três frases, assinei com letras pouco desenhadas: J.M.Coetzee.
No dia seguinte, estava em frente ao atendente novamente:
- A senhora não gostou? Não é possível, me amarro nesse cara!
- Gostei. Gostei. É por isso que eu tô devolvendo.
- ?
- É pra mais gente poder ler, sabe. Acho que os livros não podem ficar parados não. Têm que circular.
Ele gostou da explicação e pareceu acreditar. Agradeceu e, naquele segundo, foi até a mesma estante de dois dias atrás e depositou o livro entre os romances classificados como literatura estrangeira. De longe, fiquei olhando a lombada negra descansar na prateleira. Me despedi com um riso no canto da boca.

sexta-feira, maio 04, 2007

ai, ai, ai...


Acordei com o joelho doendo. Nem consigo andar. Talvez seja carência... Sempre achei que hipocondria era carência afetiva e, agora que me nasceu este problema na rótula, posso confirmar a tese. Saí pela manhã para o supermercado. Mais de 30 minutos para caminhar, arrastando a perna, a extensão da Barão de Ipanema. No trajeto fui parada por três pessoas que nunca tinha visto na vida. Repito: NUNCA na vida.

- Machucou a perna?

Contente, expliquei:

- Não. É uma inflamação na cartilagem do joelho. Nada demais. Preciso fazer fisioterapia, mas demora pra ficar bom. O médico disse que isso é comum em mulheres, que têm a musculatura da perna sei lá como e precisam de mais exercício e coisa e tal. Mas escapo de uma operação. Bem, o médico acha. Nunca se sabe...

Mais alguns passinhos e um senhor me repetiu a mesma pergunta.
- Machucou o pé?
Feliz, repeti o discurso.
- Não, é uma...
E, invariavelmente, recebi uma receita infalível para curar inflamações na cartilagem do joelho.
- É só botar gelo no local três vezes ao dia.
- Experimenta umas gotinhas de arnica dissolvidas na água. Tiro e queda.
- Repouso. Não devia estar andando. Um dia deitada e levanta nova.
Solidários. Não na alegria e na felicidade, isso é certo. Mas, SEMPRE, na tristeza e na doença. Agradeci a todos os conselhos. Prometi com ar convincente seguir as instruções à risca. E voltei do supermercado com um saquinho envolvendo o detergente. Quando cheguei em casa, vi que nem precisava ter comprado. Tinha um refil guardado na despensa.
Agora, deitada no sofá, mudando os canais da TV com um controle remoto, já me sinto bem melhor. O joelho nem me dói tanto... Mas... se piorar amanhã... talvez tenha que comprar uma bengala!

terça-feira, maio 01, 2007

Risadas ao telefone



Não fui eu quem inventou esta história. Li numa crítica de jornal. Destas de cinema. Logo na primeira frase o autor repetia o verso de Vinícius de Moraes: Todo grande amor só é bem grande se for triste. E eu ri da cabeça virar até atrás e parei para me ver assim no espelho, cheia de certezas, olhos cansados de quem já passou da metade da vida. Tirei o telefone do gancho e liguei pra Olga de troça.

- Tá no jornal de hoje. Olha lá.
- Quem assina? O Romeu?
- É! Deve ser ele! Acabou de conhecer a Julieta no baile e se deu conta de que ela é da família inimiga.

E um monte de hahahahahas preenchendo o tempo entre as frases.

- Mas Romeu é um adolescente!!!!

E a gente ria, ria, como quem sabe de tudo. E da crítica do jornal, passamos pro poema do Vinícius.

- Mas ele tava falando que quem se protege da vida perde a melhor parte dela – arrisco a Olga.
- Acho que não. Acho que é coisa de gente apaixonada. Ele sabe que ficar junto vai ser difícil, mas que chegou a um ponto que não tem como ir embora mesmo. O famoso se ficar o bicho pega, se correr o bicho come.

E as duas ficaram em silêncio. Fazendo na cabeça uma retrospectiva dos amores do passado. E desatamos a soltar um bando de nomes: João, Felipe, Tobias, Delfim, Juca, Célio, Anderson, Francisco...

E a Olga empacou no Felipe.

- Verão de 64. Nunca esqueci. Aquele sim. Grande amor... – e um suspiro subiu pelo telefone.

E não me arrisquei a falar, mas me lembrei do Alberto de pronto. Namoro cheio de brigas, que terminava e voltava, terminava e voltava, terminava e voltava. Até que um dia eu arrumei uma mochila enorme e falei pra minha mãe que ia viajar nas férias pro Nordeste. Fiquei três meses pulando de cidade em cidade. Demorei umas semanas na Bahia. Fiz amigos em Fortaleza e voltei no inicinho das aulas. Ele já estava com outra, se casou com ela. Teve três filhos e hoje deve ter uma penca de netinhos. Amorzão. Não esqueço.

Falei pra Olga que a máquina de lavar tinha parado. Tava na hora de estender as roupas. E desliguei o telefone pensando porque afinal de contas a gente só se lembra dos que não deram certo, das histórias cheias de sofrimento. É por que ficamos pensando no que poderia ter sido? Se Romeu tivesse se casado com a Julieta a gente não lembrar mais dele? Vou guardar esta crítica pra ler de novo mais tarde...

domingo, abril 15, 2007

procura-se um verso desesperadamente

Uma vez, quase escrevi o verso perfeito. Uma frase só, mas perfeita. Não tinha a ver com métrica, rima ou nada relacionado à forma. Me refiro a idéias. Bombástico e sutil ao mesmo tempo. Surpreendente e simples na medida certa. Sim, teve uma época em que eu escrevia. Chegava a virar noites inteiras preenchendo páginas com a letra quadrada e antiquada da minha Olivetti. Mas, deste período, só ficou na minha cabeça a cena desta noite. A frase brotando, quase pronta e um barulho de chinelas batendo ao longe. O coração disparado, lutando com pressa pras palavras chegarem logo, e o arrastar das chinelas vindo mais depressa que as sílabas, cada vez mais perto. E minha mãe surgiu na porta do quarto com sua camisola azul de listrinhas e, sem perguntar nada ou deixar espaço pra defesa, desligou a luz da luminária:
- Isso são horas? Já pra cama. Amanhã não acorda pra escola.
E o verso se perdeu para sempre.

Pensando bem, não era a minha mãe. Sim, sim. Mas o meu pai. Ele e seu estilo seco. Em vez das chinelas atoalhadas da mãe, o calçado de couro do pai. Inclemente, forte, quase acordando a casa intera com as batidas no chão de taquinho. E, sem deixar espaço para argumentações, me olhou da porta.
_ Magnólia, já está na hora de dormir.
E eu fui e obedeci, olhei para o lado e a escrita foi dormir junto e creio que não se levantou até agora.

Pensando bem, talvez isso não tenha acontecido. Talvez cena mais ou menos assim pertença a um poema chinês que Kafka endereçou a Felice Bauer para justificar encontros que nunca saíam do papel. Ou talvez eu estivesse lendo uma das cartas de Kafka quando o verso me bateu na cabeça, inacabado, mas quase presente. E um pico de luz fez a energia do prédio cessar e, sem poder anotar as idéias, esqueci a arrumação das palavras. Não importa agora.

quinta-feira, março 08, 2007

vestígios...

já era de se esperar. Eu sei. mas sempre me espanto. Sílvia ligou aqui pra casa ontem de noite, quase madrugada. O telefone tocou e fui até lá com as chinelas ansiosas. Morreu o Oswaldinho, que estudou com a gente em Petrópolis. Lembro que na minha festa de quinze anos ele me tirou pra dançar e tinha um sorriso que sempre, insisto, sempre, acabava em gargalhada e ia contagiando as pessoas em volta. Era pequeno e magro e doce. E mesmo sem vê-lo há anos, senti sua falta e me deu uma saudade funda. Envelhecer é ver a morte chegando aos poucos, fazendo um cerco, transformando tudo em lembrança, história e, um dia, cada vez mais próximo, vai chegar até aqui. Eu sei. Mas mesmo assim me espanto.
Acordei e fui ligar pra Lúcia. Não há nada para ser dito, mas, mesmo assim, é preciso dizer alguma coisa. O telefone tocou, tocou e a voz que atendeu, se desculpando da ausência e pedindo para que deixassem recado, era a de Oswaldinho e, sem saber porque, achei constrangedor. A pessoa some, mas não tudo. Uma voz na secretária eletrônica, o número do telefone celular nas nossas agendas (e o que afinal a Lúcia vai fazer com o aparelho?), o nome em sites da internet, as contas, as roupas... vestígios... E o nosso impulso é virar o rosto. Você liga pra casa da Lúcia, atende o Oswaldinho e na mesma hora sobe um frio na espinha e uma vontade de desligar o telefone correndo, como se por ali pudesse subir algum tipo de contágio. Quem vai sair apagando estes traços? Quanto tempo demora pro nome do morto sumir de uma pesquisa no google?
E fui no velório, de preto, lenço guardado na bolsa. E quando eu vi a Lúcia, chorei. Reconheci alguns rostos de Petrópolis também. Um grupo cada vez menor. E conforme as pessoas iam chegando as lágrimas iam pulando e encharcando o lenço inteiro e descendo pelo rosto descontroladas. Depois, já em casa, fiquei horas olhando pela janela, vendo o movimento da rua. As pessoas passando, os carros passando, um movimento que eu quase posso jurar que não vai para nunca. Mas eu sei...

domingo, fevereiro 25, 2007

Da minha janela vi cair por estes dias uma chuva de confetes e, na segunda de manhã, acordei intrigada com umas flores coloridas que tinham nascido nas árvores em frente de casa. Eram diferentes, frágeis, bonitas. Olhando com mais força, achei que talvez não fossem flores, mas parasitas. Nem uma, nem outra. Feliz, vi mais tarde que eram apenas serpentinas. E me rendi. Às pessoas que passavam na calçada cantando, aos blocos que arrastavam multidões, com músicas aos berros assustando a Juma.

Comprei uma máscara, destas feitas de couro e que cobrem apenas parte dos olhos, e saí pela cidade dançando. Andando por ruas que em nenhuma outra época do ano parecem seguras. Pulando na frente das baterias, esquecida da idade avançada ou do joelho inflamado. E, assim, subi Santa Teresa, as ruas inclinadas de Laranjeiras, percorri becos de Copacabana e esquinas da Lapa. E não sei se por causa da música, dos instrumentos batendo tão forte, do sol queimando o rosto, das pessoas que pulavam e dançavam ao meu lado, mas senti alegria.

Hoje à noite peguei um táxi na volta pra casa e notei que as barracas montadas na praia tinham ido embora. As ruas, antes tão movimentadas, guardavam apenas vestígios de copos e pedaços de fantasias esquecidas pelo chão. E tudo que denunciava alegria deixava agora uma sensação de vazio. Lembrei surpresa do fim do horário de verão e acertei o relógio. Abri a janela e, com o vento batendo na cara, não consegui escutar nem o barulho dos carros. Era um silêncio de domingo, anunciando uma semana de trabalho pela frente. Dentro das casas, imaginei pessoas estendendo em cabides a roupa que usariam no dia seguinte, enchendo as marmitas de comida. Não agüentei e pedi para o motorista ligar o rádio. Mas a voz que saiu das caixas era a de Tom Jobim tentando esquecer Luísa. E me resignei novamente, sabendo que não havia nada a fazer. O carnaval acabou. E eu nem pensei que fosse lamentar tanto.

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

e eu ganhei um caderno secreto...

Chegou ontem pelo correio. Num pacote sem remetente, envolto em papel pardo. Mas o nome Magnólia vinha destacado em letra de imprensa. Era meu mesmo. Ganhei um livro num idioma indecifrável. Minha primeira impressão foi a de que um escritor sem cuidado descansou os dedos no computador e, assim, preencheu 156 páginas. Na capa, uma imagem do Cristo Redentor de braços abertos e uma cidade ao fundo que reconheci de cartão-postal. Saí correndo para a minha estante e peguei o que parecia ser a tradução em português para o mesmo exemplar. Ou seria o contrário? Os livros eram como opostos, um o espelho do outro. Preto no branco e branco no preto. Qual seria o original?
Olhar o nome do autor na contracapa não era solução. Mesmo que descobrisse a sua nacionalidade, não poderia dizer com certeza em qual idioma a história tinha nascido primeiro. Talvez o nome nem fosse o do escritor verdadeiro e o enredo tivesse sido copiado de um livro perdido num sebo de uma cidade escondida no leste europeu. Ou a simples adaptação para a cultura local já era o suficiente para confirmar a impressão tão viva de estar diante de histórias diferentes, parecidas e não iguais, complementares talvez. Saí com o exemplar embaixo do braço e na primeira livraria perto de casa abri para o vendedor numa página qualquer.

- Não. Dicionário pra esta língua eu não tenho não.
- E essa língua é?
- Não, não tenho não.

Eram códigos. Um livro inteiro traduzido num código secreto para esconder informações que eu não soube decifrar. Para negar, talvez, o que no outro aparecia afirmado.
Quando Sofia chegou aqui em casa com minha sobrinha, eu espremia os olhos em cima das palavras para tentar entender à força o que escondiam e analisava pequenos caracteres que descobri sublinhados com lápis. E com os dedos pequenos apontados pra cima, ela fez a pergunta:

- Sobre o que é essa história. Conta, tia! Conta!

E, sem pensar, vi que a minha boca abria e de lá eu disse, num único impulso, que ali estavam descritos os passos de um viajante. Em cada lugar que andava ele ganhava um nome diferente. E, se no México o achavam simpático, nos Estados Unidos tinham dito que era mesquinho, mas falante, e na Itália parecia um pouco tímido. E havia gente que jurava que era cultíssimo e tinha lido bibliotecas inteiras, mas outros descobriram que era analfabeto. E ninguém sabia como era realmente e o que queria dizer quando falava, já que se expressa num idioma, invariavelmente, estrangeiro. Por estar sempre de passagem, não havia como confirmar as versões. Mas o importante não era descobrir a verdadeira, mas notar que todas davam a quem levantava a dúvida, uma espécie de tranqüilidade.
Antes mesmo de terminar, minha sobrinha foi atrás da boneca e disse que aquele devia ser um bom livro. E por mais absurda que me parecia a história, quando minha boca fechou, senti paz. Descansei o exemplar na prateleira e fui na geladeira pegar dois copos com refrigerante para as visitas.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

hoje tem baile funk, tem samba no flamengo...


Eu estava lá. E vi que, atrás do Chico, uma linha única fazia voltas e cortava o palco, formando um perfil que reconheci de cara. Era o Rio. Mas parecia algo mais: aquelas linhas que sobem e descem dos aparelhos de eletrocardiograma. E fazia todo sentido. Não só por causa do nome do disco, do nome do show, mas por ele mesmo. Porque quando penso no Chico me vem na cabeça uma sucessão de palavras cariocas. Longas caminhadas no Leblon, Arpoador, Ipanema, mar, praia, cidade, favela, Madureira, Penha, amores, areia, janeiro, rio. Sentei na platéia e mais não posso dizer. Do meu lado tinha gente que falava inglês, alemão, minerês. E vi que a linha que formava o perfil das montanhas ia longe. E saí feliz.


Lá não tem brisa

Não tem verde-azuis

Não tem frescura nem atrevimento

Lá não figura no mapa

No avesso da montanha, é labirinto

É contra-senha, é cara a tapa

Fala, Penha

Fala, Irajá

Fala, Olaria

Fala, Acari, Vigário Geral

Fala, Piedade

Casas sem cor

Ruas de pó, cidade

Que não se pinta

Que é sem vaidade


Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção

Traz as cabrochas e a roda de samba

Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae

Teu hip-hop

Fala na língua do rap

Desbanca a outra

A tal que abusa

De ser tão maravilhosa


Lá não tem moças douradas

Expostas, andam nus

Pelas quebradas teus exus

Não tem turistas

Não sai foto nas revistas

Lá tem Jesus

E está de costas

Fala, Maré

Fala, Madureira

Fala, Pavuna

Fala, Inhaúma

Cordovil, Pilares

Espalha a tua voz

Nos arredores

Carrega a tua cruz

E os teus tambores

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

As coisas andam um pouco estranhas por aqui.... Hoje de manhã os jornais amanheceram com a notícia de que dois assaltantes roubaram um carro e arrastaram uma criança de seis anos pelas ruas da cidade. Não deu tempo dela sair. O corpo ficou preso no cinto de segurança, e eles arrancaram assim mesmo. A mãe ficou olhando do lado de fora, enquanto o filho gritava preso. Mas não por muito tempo. Porque o motorista, tentando se livrar do corpo, ficava andando com o veículo em ziguezague para ver se o garoto se soltava, passava pelos quebra-molas a toda. E ele lá preso, batendo na lataria. Não durou muito. Que jeito? Foram embora assim. Largaram o carro numa rua e deixaram os restos do menino por lá.

Imagino a cena e acho que já assisti a isso num filme do Tarantino. Será que os motoristas pensaram o mesmo? Que estavam num filme de perseguição e era tudo gravado? Um boneco preso no carro. E um menino real gritando, protegido numa calçada, enquanto as câmeras juntavam imagem e som e davam a ilusão de realidade. Ou eles já viveram tantas cenas semelhantes que nada tem mais importância?

Desliguei a televisão e me lembrei que outro dia eu fui ligar pra Lúcia e ela me contou que o pai estava com problemas de saúde, internado num hospital público, esperando para ser transferido para uma clínica especializada. Lá, talvez pudesse operar. Lá, talvez houvesse esperança. Mas era preciso um contato. Alguém que facilitasse as coisas, que agilizasse uma fila que não anda há meses. Como esperar por meses? Tentei ajudar. Não deu tempo. Passou. E imaginei os funcionários da tal clínica atendendo o telefonema desesperado da Lúcia e repetindo com voz calma que não tinha mais vaga. Que talvez eles pudessem conseguir uma internação para dali a três meses. E desligando sem pensar. E indo tomar um café na lanchonete logo depois, imaginando a roupa que iam botar de noite. Parte do dia-a-dia. Tantos e tantos casos parecidos que já não têm mais importância.

E, enquanto eu arrumava as compras na cozinha, com a Juma pulando no meu joelho, a porta de casa ainda aberta e os sacos espalhados pelo corredor, ouvi a filha da vizinha contar que não gostava de ir mais pro baile. Que lá, quando ela queria ir no banheiro, tinha sempre um cara que agarrava as meninas pelo pescoço e tascava um beijo forçado, indo embora logo depois. E ela achava aquilo meio ruim, porque volta e meia uns fios de cabelo ficavam presos no relógio do moço.

_ Ah, eu, heim? Fico horas secando com secador. Compro creme caro pra cacete e ficam aí arrancando os fios todos. Olha lá, Vilma! Tudo quebrado! Uma nuvem de cabelos quebrados aqui em cima da minha cabeça. Olha!

E a Vilma deve ter olhado, porque fez silêncio. E depois começou a contar de um cara que tinha saído:

_ Saí umas vezes só. Coisa rápida. Eu nem queria ficar muito tempo, inventava logo uma desculpa e ia embora. Agora ele fica me ligando. Um saco. Não atendo não. Cara mala. Parece que gosta de mim. Eu, heim? Que cara maluco!

E a Vilma concordando:

_ Ah, é assim mesmo. Eu só saio umas vezes também. Depois vô embora e, se encontrar na rua, viro a cara. Eu, heim?

Achei tudo muito esquisito, que ninguém sentia mais nada. Mas parece que não. Parece que é assim mesmo. O assalto, o hospital, os casos. Tem todo dia isso aqui. É normal. Eu é que não sei mais o que significa essa palavra. Meu dicionário é que está desatualizado. Li na revista Bons Fluidos (ou seria outra?) que é pra desligar a televisão, respirar fundo, repetir num mantra três vezes, entrar no quarto e ligar o ar-condicionado. Não sei. Estou ficando velha e aqui em casa não tem ar-condicionado.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

...

Acho que eu devia chegar no teatro logo com uma confissão escrita. Algo como:

... é com vergonha que confesso que... tantas e tantas vezes, em vez de olhar entre os meus, roubei um verso teu e dei de presente. E não foi uma, nem duas ou três. Tantas que perdi a conta. E me perdoe, pois não resisto, e sei que vou fazer outra vez....

Mas depois fico pensando que deve haver um quarto cheio delas. Apartamentos inteiros cheios de cartas, caixas de e-mail explodindo de mensagens. Confissões iguais às minhas. Talvez piores. E ninguém ficaria espantado com o volume. Já deve existir um funcionário esperando a remessa antes de cada apresentação.

Ainda me lembro da última vez que assisti a um show dele. Faz tempo. Fui com a Judith e sentamos numa mesa central. Lá pelas tantas ela olhou na minha direção:
- São os olhos. O que me mata neste homem são os olhos. Um azul tão limpo.
- Então são azuis?
E ela ficou rindo, achando que eu brincava. Mas juro que nunca tinha notado. E com aqueles versos que prendem a gente por dentro lá dá pra notar alguma coisa?

Sei que em março vou voltar a contar os tostões. Já tenho pesadelos com notas voando, micro saquinhos de dinheiro com asas, como nos desenhos animados. Mas este é um dos meus momentos Scarlett O’Hara. Amanhã eu penso. Só sei que... Mês que vem vou ver o Chico no Canecão.

terça-feira, janeiro 02, 2007

primeiro dia útil do ano

Ester entrou ontem aqui em casa toda de branco, com um papo de réveillon. Agora que 2007 chegou, ela quer abrir as janelas pra deixar a luz entrar e está andando pela rua com os pulmões cheios, pronta para (vejam só, nunca é tarde!) novas experiências. Ester que me perdoe, mas eu começo o ano fazendo o movimento oposto. Tô é fechando algumas. Algumas. Não é desesperança, medo, nada disso. Muito pelo contrário. É vontade de cuidar do que tem aqui dentro. E passei o primeiro dia útil do ano fazendo faxina! A fantasia de Cabíria que entulhava o armário, por exemplo, foi pro lixo. E viva 2007!