Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

As coisas andam um pouco estranhas por aqui.... Hoje de manhã os jornais amanheceram com a notícia de que dois assaltantes roubaram um carro e arrastaram uma criança de seis anos pelas ruas da cidade. Não deu tempo dela sair. O corpo ficou preso no cinto de segurança, e eles arrancaram assim mesmo. A mãe ficou olhando do lado de fora, enquanto o filho gritava preso. Mas não por muito tempo. Porque o motorista, tentando se livrar do corpo, ficava andando com o veículo em ziguezague para ver se o garoto se soltava, passava pelos quebra-molas a toda. E ele lá preso, batendo na lataria. Não durou muito. Que jeito? Foram embora assim. Largaram o carro numa rua e deixaram os restos do menino por lá.

Imagino a cena e acho que já assisti a isso num filme do Tarantino. Será que os motoristas pensaram o mesmo? Que estavam num filme de perseguição e era tudo gravado? Um boneco preso no carro. E um menino real gritando, protegido numa calçada, enquanto as câmeras juntavam imagem e som e davam a ilusão de realidade. Ou eles já viveram tantas cenas semelhantes que nada tem mais importância?

Desliguei a televisão e me lembrei que outro dia eu fui ligar pra Lúcia e ela me contou que o pai estava com problemas de saúde, internado num hospital público, esperando para ser transferido para uma clínica especializada. Lá, talvez pudesse operar. Lá, talvez houvesse esperança. Mas era preciso um contato. Alguém que facilitasse as coisas, que agilizasse uma fila que não anda há meses. Como esperar por meses? Tentei ajudar. Não deu tempo. Passou. E imaginei os funcionários da tal clínica atendendo o telefonema desesperado da Lúcia e repetindo com voz calma que não tinha mais vaga. Que talvez eles pudessem conseguir uma internação para dali a três meses. E desligando sem pensar. E indo tomar um café na lanchonete logo depois, imaginando a roupa que iam botar de noite. Parte do dia-a-dia. Tantos e tantos casos parecidos que já não têm mais importância.

E, enquanto eu arrumava as compras na cozinha, com a Juma pulando no meu joelho, a porta de casa ainda aberta e os sacos espalhados pelo corredor, ouvi a filha da vizinha contar que não gostava de ir mais pro baile. Que lá, quando ela queria ir no banheiro, tinha sempre um cara que agarrava as meninas pelo pescoço e tascava um beijo forçado, indo embora logo depois. E ela achava aquilo meio ruim, porque volta e meia uns fios de cabelo ficavam presos no relógio do moço.

_ Ah, eu, heim? Fico horas secando com secador. Compro creme caro pra cacete e ficam aí arrancando os fios todos. Olha lá, Vilma! Tudo quebrado! Uma nuvem de cabelos quebrados aqui em cima da minha cabeça. Olha!

E a Vilma deve ter olhado, porque fez silêncio. E depois começou a contar de um cara que tinha saído:

_ Saí umas vezes só. Coisa rápida. Eu nem queria ficar muito tempo, inventava logo uma desculpa e ia embora. Agora ele fica me ligando. Um saco. Não atendo não. Cara mala. Parece que gosta de mim. Eu, heim? Que cara maluco!

E a Vilma concordando:

_ Ah, é assim mesmo. Eu só saio umas vezes também. Depois vô embora e, se encontrar na rua, viro a cara. Eu, heim?

Achei tudo muito esquisito, que ninguém sentia mais nada. Mas parece que não. Parece que é assim mesmo. O assalto, o hospital, os casos. Tem todo dia isso aqui. É normal. Eu é que não sei mais o que significa essa palavra. Meu dicionário é que está desatualizado. Li na revista Bons Fluidos (ou seria outra?) que é pra desligar a televisão, respirar fundo, repetir num mantra três vezes, entrar no quarto e ligar o ar-condicionado. Não sei. Estou ficando velha e aqui em casa não tem ar-condicionado.