Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

quinta-feira, janeiro 27, 2005

Querido F.,

Eu e Alberto adiamos a viagem para a próxima semana. É que aqui no Rio não pára de chover, me fez lembrar da minha infância e de como eu gostava de ficar em casa em dias assim, comendo brigadeiro de colher e assistindo a filmes pela televisão com a minha mãe. A sorte da aposentadoria é esta: poder voltar aos hábitos da infância sem culpas, porque eu já trabalhei a vida inteira mesmo. O azar é que se chega nela já lá pro meio da casa dos enta e o brigadeiro não é gasto numa corridinha apressada até a cozinha, fica acumulado em pregas em volta da barriga. Troquei ele por um pote de iogurte light e me tranquei no quarto para assistir a um vídeo que peguei na locadora. Sim, ainda resisto aos DVDs. Ignoro todos os extras e entrevistas com diretores e atores. Gosto de sentar no sofá com o cobertor cobrindo a pontinha dos pés, fingindo que está frio, e ouvir o reconfortante barulho da fita rodando. É isso mesmo, F. Sou uma senhora e resisto às mudanças.
Me tranquei no quarto porque Alberto tomou conta da sala. A casa dele está pintando e ele veio com mala e tudo passar uns dias aqui. A idéia era que estivéssemos em Angra, mas São Pedro quis assim. E chegou largando sapatos, que Juba faz questão de catar com a boca, como se fossem seus brinquedos. E o filho mais novo veio visitar. E, de repente, me senti numa casa com um homem adulto e um adolescente e é como se eu fosse a hóspede. Preciso aprender a dividir. Hoje, tive saudade da solidão.
Até,
M.

sábado, janeiro 22, 2005

Querido F.,

Ganhei estrelinhas de presente de um mês de namoro. Lindas estrelinhas de chocolate, embaladas com papel colorido. Não é a coisa mais adolescente do mundo? E a mais deliciosa, e romântica e linda? Amei. Juba também. Comeu uma meia dúzia delas, apesar de o veterinário ter proibido qualquer tipo de doce para a minha cachorrinha. Mas era dia de festa...
Ah, vamos todos (Eu, Alberto e Juba) passar uns dias em Ilha Grande, na Praia de Palmas. Mando notícias de lá, se possível...
Até,
M.

sexta-feira, janeiro 21, 2005

Querido F.,

Segui seu conselho e falei sobre este meu lado voyeur de mim mesma na análise. Carmem, sempre tão calada, abriu a boca para uma observação simples: as pessoas com estima alta costumam se sentir bem em situações amorosas. Se entregam sem críticas, se achando merecedoras de carinho e amor. Quem tem a estima no pé acaba vendo um lado ridículo em toda a situação. É como se no fundo você achasse que não merece viver nada daquilo. Foi como engolir um caroço de ameixa à seco. Ela deve ter razão. Se eu cortar a unha do pé muito rente acho que perco minha auto-estima, de tão lá embaixo que está.
Saí de lá e entrei numa loja para comprar uma lingerie nova. Queria me sentir desejada, merecedora de uma noite de amor com o namorado, coisa simples, para qualquer mortal. Meu erro foi chegar em casa e experimentar a peça em frente ao espelho. Juro que era um conjunto lindo, de sonho, que nunca na vida eu tinha tido. Todo feito de uma renda finíssima, com um lacinho delicado entre os seios. Mas as coxas rechonchudas, a barriga com pregas e os braços redondos chamam mais atenção do que qualquer sutiã e calcinha. Não consegui olhar pra mais nada a não ser o excesso de gordura. Agora é que perdi ela de vez. Talvez o Vigilantes me salve.

segunda-feira, janeiro 17, 2005

Querido F.,

Eu tenho esta mania de me olhar de fora. Não consigo aproveitar os momentos, porque estou sempre observando cada coisa que faço pelo lado de fora, como se estivesse olhando um filme em que estou atuando. E meu olhar é sempre crítico, procura pelos defeitos. Por mais que eu tente me esquecer nos braços do Alberto, por exemplo, me pego sempre com um olho aberto e outro fechado. E tudo fica parecendo inapropriado. Me vejo velha para beijos, abraços, sexo. Mas me sinto jovem durante os beijos, abraços e sexo. Tento desligar o olho vigilante, mas ele resiste, cada vez mais crítico, implacável. Tenho vontade de transar com as luzes apagadas, embaixo das cobertas. Me escondendo de mim mesma. Mas resisto, não me entrego. Na minha luta, tento ignorar as rugas, as gordurinhas que os anos e os doces consumidos em todos estes anos acumularam em volta da minha cintura, e acendo a luz principal e finjo que não vejo meu reflexo passeando pelo espelho que tenho em frente à cama. Na primeira vez que o alberto pisou na minha casa, veio afoito, passando as mãos pelo meu corpo. Me senti viva, cheia de desejo. E me senti sem graça, me vendo de fora sentada no sofá, velha para tudo aquilo. Talvez você ache que este papo todo deveria ficar guardado para meus encontros com minha analista. Mas eu fico achando que não sou só eu que tenho uma espiã dentro de mim. Enfim, quis dividir com você a experiência.
Mil beijos, querido.
Até,
M.

quinta-feira, janeiro 06, 2005

Querido F.,

Sei que eu dei uma sumida e você deve estar se perguntando o que foi que aconteceu. Confesso que me deu preguiça de ficar descrevendo desta vez tudo o que eu fiz em Nova York, porque lá é sempre aquela correria gostosa, mil lugares pra ir, mil coisas para ver e uma andança que toma conta do dia todo. E, depois, porque o que aconteceu comigo no aeroporto apagou a importância de todo o resto.
Hoje em dia eu sempre fico tensa quando viajo para os Estados Unidos. Por causa desta paranóia que eles têm depois dos atentados. Mandam você tirar o sapato, vasculham cada bolsinho atrás de tesourinhas de unha e mortíferos alicates. Pois eu estava era pensando nisso: se tinha alguma coisa na mala que pudesse ser vista por eles como uma arma. Não curti os momentos de espera, como normalmente. Não comprei revistas. Não fui tomar café e observar as pessoas arrastando as malas pelos corredores.
Conheci o Alberto já dentro do avião. Estava sentado do meu lado, mora no Rio e, o melhor de tudo, em Copacabana também. Ele tem um filho já adulto e foi pra Nova York justamente visitar o menino. Foi uma viagem curta. Pelo menos, foi assim que senti. Ficamos conversando e no final estávamos nos beijando em pleno vôo. Achei que já tinha passado da idade destes encontros amorosos, mas, naquela hora, esqueci de todos estes meus preconceitos. Acho que estamos namorando... Estou feliz.
Feliz 2005, querido! Como foram as comemorações por aí!
beijos, com carinho,
M.