Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

domingo, fevereiro 25, 2007

Da minha janela vi cair por estes dias uma chuva de confetes e, na segunda de manhã, acordei intrigada com umas flores coloridas que tinham nascido nas árvores em frente de casa. Eram diferentes, frágeis, bonitas. Olhando com mais força, achei que talvez não fossem flores, mas parasitas. Nem uma, nem outra. Feliz, vi mais tarde que eram apenas serpentinas. E me rendi. Às pessoas que passavam na calçada cantando, aos blocos que arrastavam multidões, com músicas aos berros assustando a Juma.

Comprei uma máscara, destas feitas de couro e que cobrem apenas parte dos olhos, e saí pela cidade dançando. Andando por ruas que em nenhuma outra época do ano parecem seguras. Pulando na frente das baterias, esquecida da idade avançada ou do joelho inflamado. E, assim, subi Santa Teresa, as ruas inclinadas de Laranjeiras, percorri becos de Copacabana e esquinas da Lapa. E não sei se por causa da música, dos instrumentos batendo tão forte, do sol queimando o rosto, das pessoas que pulavam e dançavam ao meu lado, mas senti alegria.

Hoje à noite peguei um táxi na volta pra casa e notei que as barracas montadas na praia tinham ido embora. As ruas, antes tão movimentadas, guardavam apenas vestígios de copos e pedaços de fantasias esquecidas pelo chão. E tudo que denunciava alegria deixava agora uma sensação de vazio. Lembrei surpresa do fim do horário de verão e acertei o relógio. Abri a janela e, com o vento batendo na cara, não consegui escutar nem o barulho dos carros. Era um silêncio de domingo, anunciando uma semana de trabalho pela frente. Dentro das casas, imaginei pessoas estendendo em cabides a roupa que usariam no dia seguinte, enchendo as marmitas de comida. Não agüentei e pedi para o motorista ligar o rádio. Mas a voz que saiu das caixas era a de Tom Jobim tentando esquecer Luísa. E me resignei novamente, sabendo que não havia nada a fazer. O carnaval acabou. E eu nem pensei que fosse lamentar tanto.

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

e eu ganhei um caderno secreto...

Chegou ontem pelo correio. Num pacote sem remetente, envolto em papel pardo. Mas o nome Magnólia vinha destacado em letra de imprensa. Era meu mesmo. Ganhei um livro num idioma indecifrável. Minha primeira impressão foi a de que um escritor sem cuidado descansou os dedos no computador e, assim, preencheu 156 páginas. Na capa, uma imagem do Cristo Redentor de braços abertos e uma cidade ao fundo que reconheci de cartão-postal. Saí correndo para a minha estante e peguei o que parecia ser a tradução em português para o mesmo exemplar. Ou seria o contrário? Os livros eram como opostos, um o espelho do outro. Preto no branco e branco no preto. Qual seria o original?
Olhar o nome do autor na contracapa não era solução. Mesmo que descobrisse a sua nacionalidade, não poderia dizer com certeza em qual idioma a história tinha nascido primeiro. Talvez o nome nem fosse o do escritor verdadeiro e o enredo tivesse sido copiado de um livro perdido num sebo de uma cidade escondida no leste europeu. Ou a simples adaptação para a cultura local já era o suficiente para confirmar a impressão tão viva de estar diante de histórias diferentes, parecidas e não iguais, complementares talvez. Saí com o exemplar embaixo do braço e na primeira livraria perto de casa abri para o vendedor numa página qualquer.

- Não. Dicionário pra esta língua eu não tenho não.
- E essa língua é?
- Não, não tenho não.

Eram códigos. Um livro inteiro traduzido num código secreto para esconder informações que eu não soube decifrar. Para negar, talvez, o que no outro aparecia afirmado.
Quando Sofia chegou aqui em casa com minha sobrinha, eu espremia os olhos em cima das palavras para tentar entender à força o que escondiam e analisava pequenos caracteres que descobri sublinhados com lápis. E com os dedos pequenos apontados pra cima, ela fez a pergunta:

- Sobre o que é essa história. Conta, tia! Conta!

E, sem pensar, vi que a minha boca abria e de lá eu disse, num único impulso, que ali estavam descritos os passos de um viajante. Em cada lugar que andava ele ganhava um nome diferente. E, se no México o achavam simpático, nos Estados Unidos tinham dito que era mesquinho, mas falante, e na Itália parecia um pouco tímido. E havia gente que jurava que era cultíssimo e tinha lido bibliotecas inteiras, mas outros descobriram que era analfabeto. E ninguém sabia como era realmente e o que queria dizer quando falava, já que se expressa num idioma, invariavelmente, estrangeiro. Por estar sempre de passagem, não havia como confirmar as versões. Mas o importante não era descobrir a verdadeira, mas notar que todas davam a quem levantava a dúvida, uma espécie de tranqüilidade.
Antes mesmo de terminar, minha sobrinha foi atrás da boneca e disse que aquele devia ser um bom livro. E por mais absurda que me parecia a história, quando minha boca fechou, senti paz. Descansei o exemplar na prateleira e fui na geladeira pegar dois copos com refrigerante para as visitas.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

hoje tem baile funk, tem samba no flamengo...


Eu estava lá. E vi que, atrás do Chico, uma linha única fazia voltas e cortava o palco, formando um perfil que reconheci de cara. Era o Rio. Mas parecia algo mais: aquelas linhas que sobem e descem dos aparelhos de eletrocardiograma. E fazia todo sentido. Não só por causa do nome do disco, do nome do show, mas por ele mesmo. Porque quando penso no Chico me vem na cabeça uma sucessão de palavras cariocas. Longas caminhadas no Leblon, Arpoador, Ipanema, mar, praia, cidade, favela, Madureira, Penha, amores, areia, janeiro, rio. Sentei na platéia e mais não posso dizer. Do meu lado tinha gente que falava inglês, alemão, minerês. E vi que a linha que formava o perfil das montanhas ia longe. E saí feliz.


Lá não tem brisa

Não tem verde-azuis

Não tem frescura nem atrevimento

Lá não figura no mapa

No avesso da montanha, é labirinto

É contra-senha, é cara a tapa

Fala, Penha

Fala, Irajá

Fala, Olaria

Fala, Acari, Vigário Geral

Fala, Piedade

Casas sem cor

Ruas de pó, cidade

Que não se pinta

Que é sem vaidade


Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção

Traz as cabrochas e a roda de samba

Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae

Teu hip-hop

Fala na língua do rap

Desbanca a outra

A tal que abusa

De ser tão maravilhosa


Lá não tem moças douradas

Expostas, andam nus

Pelas quebradas teus exus

Não tem turistas

Não sai foto nas revistas

Lá tem Jesus

E está de costas

Fala, Maré

Fala, Madureira

Fala, Pavuna

Fala, Inhaúma

Cordovil, Pilares

Espalha a tua voz

Nos arredores

Carrega a tua cruz

E os teus tambores

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

As coisas andam um pouco estranhas por aqui.... Hoje de manhã os jornais amanheceram com a notícia de que dois assaltantes roubaram um carro e arrastaram uma criança de seis anos pelas ruas da cidade. Não deu tempo dela sair. O corpo ficou preso no cinto de segurança, e eles arrancaram assim mesmo. A mãe ficou olhando do lado de fora, enquanto o filho gritava preso. Mas não por muito tempo. Porque o motorista, tentando se livrar do corpo, ficava andando com o veículo em ziguezague para ver se o garoto se soltava, passava pelos quebra-molas a toda. E ele lá preso, batendo na lataria. Não durou muito. Que jeito? Foram embora assim. Largaram o carro numa rua e deixaram os restos do menino por lá.

Imagino a cena e acho que já assisti a isso num filme do Tarantino. Será que os motoristas pensaram o mesmo? Que estavam num filme de perseguição e era tudo gravado? Um boneco preso no carro. E um menino real gritando, protegido numa calçada, enquanto as câmeras juntavam imagem e som e davam a ilusão de realidade. Ou eles já viveram tantas cenas semelhantes que nada tem mais importância?

Desliguei a televisão e me lembrei que outro dia eu fui ligar pra Lúcia e ela me contou que o pai estava com problemas de saúde, internado num hospital público, esperando para ser transferido para uma clínica especializada. Lá, talvez pudesse operar. Lá, talvez houvesse esperança. Mas era preciso um contato. Alguém que facilitasse as coisas, que agilizasse uma fila que não anda há meses. Como esperar por meses? Tentei ajudar. Não deu tempo. Passou. E imaginei os funcionários da tal clínica atendendo o telefonema desesperado da Lúcia e repetindo com voz calma que não tinha mais vaga. Que talvez eles pudessem conseguir uma internação para dali a três meses. E desligando sem pensar. E indo tomar um café na lanchonete logo depois, imaginando a roupa que iam botar de noite. Parte do dia-a-dia. Tantos e tantos casos parecidos que já não têm mais importância.

E, enquanto eu arrumava as compras na cozinha, com a Juma pulando no meu joelho, a porta de casa ainda aberta e os sacos espalhados pelo corredor, ouvi a filha da vizinha contar que não gostava de ir mais pro baile. Que lá, quando ela queria ir no banheiro, tinha sempre um cara que agarrava as meninas pelo pescoço e tascava um beijo forçado, indo embora logo depois. E ela achava aquilo meio ruim, porque volta e meia uns fios de cabelo ficavam presos no relógio do moço.

_ Ah, eu, heim? Fico horas secando com secador. Compro creme caro pra cacete e ficam aí arrancando os fios todos. Olha lá, Vilma! Tudo quebrado! Uma nuvem de cabelos quebrados aqui em cima da minha cabeça. Olha!

E a Vilma deve ter olhado, porque fez silêncio. E depois começou a contar de um cara que tinha saído:

_ Saí umas vezes só. Coisa rápida. Eu nem queria ficar muito tempo, inventava logo uma desculpa e ia embora. Agora ele fica me ligando. Um saco. Não atendo não. Cara mala. Parece que gosta de mim. Eu, heim? Que cara maluco!

E a Vilma concordando:

_ Ah, é assim mesmo. Eu só saio umas vezes também. Depois vô embora e, se encontrar na rua, viro a cara. Eu, heim?

Achei tudo muito esquisito, que ninguém sentia mais nada. Mas parece que não. Parece que é assim mesmo. O assalto, o hospital, os casos. Tem todo dia isso aqui. É normal. Eu é que não sei mais o que significa essa palavra. Meu dicionário é que está desatualizado. Li na revista Bons Fluidos (ou seria outra?) que é pra desligar a televisão, respirar fundo, repetir num mantra três vezes, entrar no quarto e ligar o ar-condicionado. Não sei. Estou ficando velha e aqui em casa não tem ar-condicionado.