Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

e eu ganhei um caderno secreto...

Chegou ontem pelo correio. Num pacote sem remetente, envolto em papel pardo. Mas o nome Magnólia vinha destacado em letra de imprensa. Era meu mesmo. Ganhei um livro num idioma indecifrável. Minha primeira impressão foi a de que um escritor sem cuidado descansou os dedos no computador e, assim, preencheu 156 páginas. Na capa, uma imagem do Cristo Redentor de braços abertos e uma cidade ao fundo que reconheci de cartão-postal. Saí correndo para a minha estante e peguei o que parecia ser a tradução em português para o mesmo exemplar. Ou seria o contrário? Os livros eram como opostos, um o espelho do outro. Preto no branco e branco no preto. Qual seria o original?
Olhar o nome do autor na contracapa não era solução. Mesmo que descobrisse a sua nacionalidade, não poderia dizer com certeza em qual idioma a história tinha nascido primeiro. Talvez o nome nem fosse o do escritor verdadeiro e o enredo tivesse sido copiado de um livro perdido num sebo de uma cidade escondida no leste europeu. Ou a simples adaptação para a cultura local já era o suficiente para confirmar a impressão tão viva de estar diante de histórias diferentes, parecidas e não iguais, complementares talvez. Saí com o exemplar embaixo do braço e na primeira livraria perto de casa abri para o vendedor numa página qualquer.

- Não. Dicionário pra esta língua eu não tenho não.
- E essa língua é?
- Não, não tenho não.

Eram códigos. Um livro inteiro traduzido num código secreto para esconder informações que eu não soube decifrar. Para negar, talvez, o que no outro aparecia afirmado.
Quando Sofia chegou aqui em casa com minha sobrinha, eu espremia os olhos em cima das palavras para tentar entender à força o que escondiam e analisava pequenos caracteres que descobri sublinhados com lápis. E com os dedos pequenos apontados pra cima, ela fez a pergunta:

- Sobre o que é essa história. Conta, tia! Conta!

E, sem pensar, vi que a minha boca abria e de lá eu disse, num único impulso, que ali estavam descritos os passos de um viajante. Em cada lugar que andava ele ganhava um nome diferente. E, se no México o achavam simpático, nos Estados Unidos tinham dito que era mesquinho, mas falante, e na Itália parecia um pouco tímido. E havia gente que jurava que era cultíssimo e tinha lido bibliotecas inteiras, mas outros descobriram que era analfabeto. E ninguém sabia como era realmente e o que queria dizer quando falava, já que se expressa num idioma, invariavelmente, estrangeiro. Por estar sempre de passagem, não havia como confirmar as versões. Mas o importante não era descobrir a verdadeira, mas notar que todas davam a quem levantava a dúvida, uma espécie de tranqüilidade.
Antes mesmo de terminar, minha sobrinha foi atrás da boneca e disse que aquele devia ser um bom livro. E por mais absurda que me parecia a história, quando minha boca fechou, senti paz. Descansei o exemplar na prateleira e fui na geladeira pegar dois copos com refrigerante para as visitas.