Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

terça-feira, agosto 31, 2004

Orlando, 31 de agosto de 2004

Querido F.,

Descobri hoje de manhã que a minha pssagem é para amanhã e não para quinta, como tinha pensado. Onde estou com a cabeça? Quando olhei a data no bilhete só senti vontade de dizer uma coisa: IIIIUUUPPPPPIIIIIIIII!!! Felicidade! Definitivamete, Orlando e eu não nascemos para ficar juntos. Deixo a terra sem saudades. Hoje fui fazer comprar. Quer dizer, olhar lojas, porque o meu orçamento não me permite comprar mais do que o almoço. Fui num shopping aqui só com pontas de estoque. Uma maravilha. Tudo barato mesmo. Tinha loja da Nike com tênis por menos de R$ 100 (em reais mesmo). Tá certo que isso não é barato, mas experimente ir no shopping e ver quanto está custando um sapato da Nike. Quase o dobro. Tinha Gap e um monte de outras lojas que eu adoro. Consegui comprar uma bolsinha na Gap por US$ 2. Dá pra acreditar? Seis reais! Pudera, tava na promoção da ponta de estoque, mas eu juro que não era bagulho não. Bonitinha que só. Bem, mas minhas compras pararam aí.
Amanhã estou embarcando!
Ah, e agosto acabou! Ainda bem! Êta mês difícil...

Até...
M.
Querido F.,

Hoje fui ao Sea World. Como estava cheio. Nunca imaginei. Uma multidão enorme. Vi um berçário de golfinhos. Não achei muita graça. Os pobres ficam numa piscina (pequena, não é grande não) e a gente fica vendo uns rabinhos mexendo e alguns pulinhos de uns mais levados. Almocei num restaurante onde você consegue ver um monte de tubarões passando. No começo fiquei fascinada. Depois me deu um nervoso danado. Eles passavam e passavam e passavam. Fazendo sempre o mesmo percurso. Pareciam mecânicos. Ai, ai, ai... Talvez eu esteja de mau humor. Mas a verdade é que me senti muito sozinha. Podia ficar sentada num canteiro qualquer daqueles. O dia inteirinho, sem nem me mexer. Ninguém nem ia notar... Era tanta gente que eu me senti invisível...
Até mais,
M.

domingo, agosto 29, 2004

Querido F.,

Estou há quase uma semana aqui em Orlando e a única coisa que posso dizer é que... não aguento mais. Já comprei um chapéu com as orelhinhas do Mickey, bichos de pelúcia nas muitas lojinhas dos parques (não tenho idéia de onde vou colocá-los depois, mas simplesmente parece impossível deixar de comprá-los) e, sim, preciso confessar, no início parecia uma crinça vibrando em montanhas-russas, tirando fotos dos bichos de pertinho no Bush Gardens e mergulhando com os golfinhos no Paradise Island. A sorte foi ter viajado sozinha. Isso evitou que alguém visse cenas ridículas potagonizadas por mim. No Paradise Island, por exemplo, um parque cheio de lagos, onde você pode mergular junto com os peixes e passar a mão em arraias e golfinhos, cada visitante recebe uma macacão de calça e camisa curtas, justinho ao corpo, além de máscara e snorkel. Me espantei quando vi minha imagem refletida num vidro. Minha aparência se aproximava muito a de uma meninnha de uns seis anos, exatamente ao meu lado. Cabelos molhados e descabelados, máscara na mão, ligando a mínima para os pneuzinhos que apareciam desenhados no macacão. É, eles conseguiram me fazer voltar à infância. Quase saí correndo entre os lagos, segurando as pernas com a mão e dando um pulo na água, BOMBA, para molhar todos em volta. Bem, mas nem que eu tivesse seis anos, poderia fazer isso. Porque os americanos são todos cheios de normas, cuidados, leis. Tem o comportamento todo controlado. E era só olhar com mais atenção para o lado para ver que a água dos lagos tinha um gosto insuportável, salgada artificialmente, com temperatura, PH e tudo mais controlado. A vegetação era um jardim planejado por algum paisagista e o ambiente imitava pedra, imitava grama, imitava areia. Estou agoniada com tudo aqui. Tudo à minha volta finge ser alguma coisa.
Ontem senti um certo alívio. Fui visitar um lugar chamado Ybor City, em Tampa. É um bairro histórico. Eu não sabia, mas muitos cubanos se instalaram nesta localidade no início do século passado e a região chegou a ser um pólo de fabricação de charutos. Hoje ainda é possível comprar charutos feitos lá, mas as fábricas fecharam quase todas. Os prédios, porém, ainda estão de pé, feitos de tijolos de verdade, maçicos, com os enormes janelões para iluminar o ambiente. Tem museu, com aposentados dando explicações sobre a história local, e dá para fazer um passeio a pé (coisa rara nos Estados Unidos) com guia, dando uma volta por todo o bairro. Um alívio... Tudo ali existiu de verdade e tem uma história para contar. Me senti, pelo menos um pouquinho, conectada com o mundo.
Bem, ainda faltam três dias. Mando notícias.

Até.
M.

terça-feira, agosto 24, 2004

Querido F.,

Saudades suas... Acabou o período de luto. Pelo menos, decidi que era hora de retomar a vida. Estou aqui no aeroporto. Parei um minuto para lhe enviar esta mensagem. Vou para Orlando. Tantos e tantos brasileiros fazem este mesmo percurso todo ano. Os americanos mesmo, basta ter um pequeno feriado, para se enfiarem nos parques de diversões. Vou também. Colei adesivos coloridos na minha mala. Portanto, acho que não vou ter problemas em encontrá-la e ando animada. Quero experimentar tudo, deixar a parte criança que ainda existe aqui dentro fluir. Vamos ver o que acontece.
Ah, os dias voltaram a nascer ensolarados....

Até mais...
M.

quinta-feira, agosto 05, 2004

Minha mala não saiu do armário, estou sentada na minha própria cama, do lado da minha mesinha de cabeceira, longe de qualquer mobiliário impessoal de um quarto de hotel. Mas hoje eu acordei e estava tudo diferente. Olhei pela janela e juro que o prédio da frente não estava mais lá, colocaram uma névoa densa e cinza no lugar. Não havia árvores na rua e pessoas de roupa fluorescente circulavam lá embaixo. Que cidade é essa? Tantas vezes já acordei assustada no meio da noite numa cidade distante, de um país esquisito, tentando fazer na memória o percurso das últimas semanas. Tentando me localizar num espaço irreconhecível. Nunca tinha acontecido era de despertar em casa e me sentir no apartamento de outra pessoa, como nos sonhos, você gira a chave e encontra do outro lado da porta uma casa que não é mais a sua, ocupada por pessoas que você nunca viu. É como se de repente, não existisse mais lugar para você no mundo, puxaram o tapete e, junto com ele, foi tudo o que tinha sido estruturado, arrumado, empilhado.
Caminhei até a sala e meu sofá tinha mudado de cor, pelo menos eu não me lembrava de ter escolhido um tecido verde para forrar aqueles módulos de espuma. A janela estava coberta de plantas, folhas que eu nunca vi, que parece terem crescido ao longo da noite. Abri o vidro e entrou uma brisa empoeirada e um tufo de vento jogou folhas secas que estavam na rua para dentro de casa. Agora, é como se estivesse num edifício abandonado, destes que se vê no noticiário da noite, invadido por um bando de gente que não onde viver. Onde é que eu estou? Pela geladeira, fico com a impressão de estar na casa de alguém de regime, muito magro. Dois vidros de iogurte desnatado já fora de validade pendem da porta, junto com cinco maçãs meio passadas. Me espanto quando olho para o chão. Botaram um tapete azul celeste ali que eu nunca teria escolhido, com um bordado bem no meio, um coração explodindo.
Pelo frio fico achando que estou no Sul do país ou talvez esteja em pleno inverno de Londres, isso explicaria a névoa lá fora. Um frio forte. Não consigo fazer mais nada, volto pra cama. No caminho tropeço numa toalha embolada na porta do quarto. Recolho e sinto um cheiro tão familiar que lembro de tudo. A Juba, perdi a Juba. Fui levá-la para passear de noite e ela começou a correr de repente, correr, correr. No meio da calçada, sumiu na escuridão. Gritei, chorei, chamei, procurei em toda parte. Sumiu a minha vida.
Desculpe não ter botado data nesta carta, não sei que dia é hoje. Já estamos em agosto?
Até M.