Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Querido F.,

Abri a janela hoje de manhã e o dia veio abafado. A brisa deixou de correr. Procurei bem fundo no peito e não encontrei mais nada lá dentro. Não tenho certeza absoluta, nunca temos, mas meu corpo pareceu limpo, liso, oco por dentro.
As obras na casa do Alberto se estenderam um pouco mais. Ele resolveu fazer uma pequena reforma lá dentro. Trouxe uma mala grande, bolsas e mais bolsas cheia de papéis, livros, agenda. E eu me peguei remexendo em seus papéis. Queria saber. Dar conta de tudo. Saber todos os passos, tudo o que se passa dentro do peito. Ter a certeza de que ele me ama. Saber o que ele sente.
Admito que procurei, em meio aos papéis, cartas, bilhetes e o que fosse da ex-mulher, de ex-namoradas, de ex-casos. Quero saber de tudo. O que aconteceu. As mulheres que ele amou e quanto amou. Se foi mais ou melhor do que é comigo.

Quero saber se, em alguns momentos, deseja outras pela rua. Se tem casos mal resolvidos, lembranças de um passado que gostaria de manter durante o presente. Quero um homem transparente ao meu lado, decodificado. Porque o contrário disso parece inadmissível. Porque precisa ser só eu. A única. A mais amada. Uma relação completa.
E a minha analista acha que eu ando procurando um motivo para acabar com esta relação. Porque se eu souber que ele pensou numa mulher que conheceu, lembrou de leve um caso do passado, depois do café da manhã, de termos feito sexo ou da novela das oito, vou ter que terminar. E isso vai acontecer. Porque não é possível ter uma pessoa por completo, por inteiro. E talvez eu faça isso só para sacudir o que sinto aqui dentro. Porque é melhor sentir ciúmes do que não sentir absolutamente nada. Ou talvez porque eu precise saber que ele é desejado por outras para ver que tem valor.
Será que o amor é isso? Uma coisa que inventamos depois de assistir à novela das sete? É tudo um dia após o outro, com um ar morno e denso, sem vento? Uma brisa parada envolvendo tudo...