Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

quinta-feira, agosto 05, 2004

Minha mala não saiu do armário, estou sentada na minha própria cama, do lado da minha mesinha de cabeceira, longe de qualquer mobiliário impessoal de um quarto de hotel. Mas hoje eu acordei e estava tudo diferente. Olhei pela janela e juro que o prédio da frente não estava mais lá, colocaram uma névoa densa e cinza no lugar. Não havia árvores na rua e pessoas de roupa fluorescente circulavam lá embaixo. Que cidade é essa? Tantas vezes já acordei assustada no meio da noite numa cidade distante, de um país esquisito, tentando fazer na memória o percurso das últimas semanas. Tentando me localizar num espaço irreconhecível. Nunca tinha acontecido era de despertar em casa e me sentir no apartamento de outra pessoa, como nos sonhos, você gira a chave e encontra do outro lado da porta uma casa que não é mais a sua, ocupada por pessoas que você nunca viu. É como se de repente, não existisse mais lugar para você no mundo, puxaram o tapete e, junto com ele, foi tudo o que tinha sido estruturado, arrumado, empilhado.
Caminhei até a sala e meu sofá tinha mudado de cor, pelo menos eu não me lembrava de ter escolhido um tecido verde para forrar aqueles módulos de espuma. A janela estava coberta de plantas, folhas que eu nunca vi, que parece terem crescido ao longo da noite. Abri o vidro e entrou uma brisa empoeirada e um tufo de vento jogou folhas secas que estavam na rua para dentro de casa. Agora, é como se estivesse num edifício abandonado, destes que se vê no noticiário da noite, invadido por um bando de gente que não onde viver. Onde é que eu estou? Pela geladeira, fico com a impressão de estar na casa de alguém de regime, muito magro. Dois vidros de iogurte desnatado já fora de validade pendem da porta, junto com cinco maçãs meio passadas. Me espanto quando olho para o chão. Botaram um tapete azul celeste ali que eu nunca teria escolhido, com um bordado bem no meio, um coração explodindo.
Pelo frio fico achando que estou no Sul do país ou talvez esteja em pleno inverno de Londres, isso explicaria a névoa lá fora. Um frio forte. Não consigo fazer mais nada, volto pra cama. No caminho tropeço numa toalha embolada na porta do quarto. Recolho e sinto um cheiro tão familiar que lembro de tudo. A Juba, perdi a Juba. Fui levá-la para passear de noite e ela começou a correr de repente, correr, correr. No meio da calçada, sumiu na escuridão. Gritei, chorei, chamei, procurei em toda parte. Sumiu a minha vida.
Desculpe não ter botado data nesta carta, não sei que dia é hoje. Já estamos em agosto?
Até M.