Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

segunda-feira, julho 02, 2007

uma história, mais uma história...

Nem olhei as prateleiras e fui direto no atendente. Queria o primeiro livro autobiográfico escrito pelo Coetzee, Cenas de uma vida, editado pela Best Seller e esgotado há tempos por aqui. Tinha. Nem acreditei. Tinha! Depois de uma peregrinação por dezenas de sebos da cidade, achei. Fui pra casa com aquela sensação de quem ganhou brinquedo novo. Quarta-feira agora começa outra edição da Flip e o cara vai estar em Paraty. Queria ler antes da festa, levar para ele autografar depois da palestra.
Li num dia, mas passei outro inteiro só tentando decifrar os garranchos que alguém deixou no topo de algumas páginas. Logo no começo, descobri, estava escrito num canto: “o que é ser normal?” Percorri a página inteira pra tentar entender e, naquele ponto da história, o Coetzee menino estava tentando imitar os colegas no colégio. Sofrendo por não saber os códigos que devia seguir. E, por mais que se esforçasse, inadequação era a única coisa que encontrava.
Mais algumas folhas pra frente e outra anotação, desta vez em letra de imprensa: “memória ou ficção?” E entendi que ela se referia ao estilo narrativo que o autor escolheu. Uma autobiografia toda feita em terceira pessoa. Ele conta suas memórias como quem fala de outro. Talvez fale mesmo. Quem disse que um adulto pode lembrar tintim por tintim da sua rotina aos dez anos?
Mas o que mais me intrigava não era decifrar as interpretações que alguém tinha feito, tentar descobrir como cada trecho tinha tocado este ser, o que chamava atenção em cada parte. Mas, sim, quem era este leitor. Eu não era a primeira a percorrer aquelas páginas. E, tentando imaginar este outro, ia criando uma segunda história na cabeça. Estava diante de um livro duplo. Dois romances em um.
Acho que era homem. Letra sem capricho, seca, cheia de ponta. Imagino que era jovem e que ganhou o livro de presente. Olhou para a capa curioso. Relato de um escritor da África do Sul, contando as primeiras dúvidas e questionamentos de sua infância. Acho que leu com calma, aos poucos, anotando os pontos pra não esquecer mais tarde, sentado em alguma cadeira de praia, baixando o livro e fixando o olho no mar enquanto pensava nos trechos da história. Se tinha gostado? Sim, tinha, tinha. Mas porque se desfez do livro, então? Não faz muito sentido alguém perder tanto tempo anotando nas bordas para, mais tarde, deixar o exemplar em alguma prateleira de sebo.
Virei a capa e fiquei olhando o título impresso bem no centro da primeira página. Com uma caneta preta escrevi em inglês:

Um lugar pro coração pousar.
Um endereço que freqüente sem morar.
Ali na esquina do sonho com a razão.

Não me dei nem ao trabalho de inventar algo original. Marisa Monte cantava os versos aqui na casa do vizinho, enquanto eu copiava apressada, tentando acompanhar sua fala. Mesmo assim, embaixo das três frases, assinei com letras pouco desenhadas: J.M.Coetzee.
No dia seguinte, estava em frente ao atendente novamente:
- A senhora não gostou? Não é possível, me amarro nesse cara!
- Gostei. Gostei. É por isso que eu tô devolvendo.
- ?
- É pra mais gente poder ler, sabe. Acho que os livros não podem ficar parados não. Têm que circular.
Ele gostou da explicação e pareceu acreditar. Agradeceu e, naquele segundo, foi até a mesma estante de dois dias atrás e depositou o livro entre os romances classificados como literatura estrangeira. De longe, fiquei olhando a lombada negra descansar na prateleira. Me despedi com um riso no canto da boca.