Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

segunda-feira, novembro 27, 2006

o dia em que o contra-regra tirou folga

Encontrei, numa caixa de guardados, uma foto do Carlos. E me lembrei de uma viagem que fizemos. A estrada enlameada de Visconde de Mauá e foi só o carro engatar na porta da pousada pra cair um pé d´água de novela das oito. Eu me espremia embaixo de um guarda-chuva florido que a recepcionista foi buscar atrás do balcão e era mais em sinal de protesto mesmo, uma forma de reclamar com o tempo a água que ele deixava cair lá de cima. Porque não adiantava nada, era daquelas chuvas de novela, como eu disse. Quando parece que a atriz entrou embaixo de um chuveiro ligado no máximo e um bando de ventiladores fazem a água dançar de um lado pro outro e enchem o chão de poçinhas bem no lugar onde a gente tá botando o pé. Parece tudo planejado. Pra deixar a roupa grudando no corpo. E quando você pensa que o guarda-chuva tá cobrindo pelo menos a franja do penteado, vem um vento não sei de onde e vira ele todo pra cima. E lá se vai o penteado. A água escorrendo na cara e a franja grudada na testa.

E me lembro de sentir vergonha. Tinha feito uma mala com roupa nova, os trajes combinando pro fim de semana. Unha feita e tudo mais. E foi só pisar no tal do paraíso verde, pra um céu azul, sem nuvens, cismar em jogar água aos montes de lá. E não dava mais pra disfarçar nada. Logo do começo, de cara, era aquilo ali e pronto. Com o cabelo grudando na testa, a roupa colada no corpo, respingos de lama cobrindo as pernas, eu era eu mesma. Daquele jeitinho lá. Pegar ou largar. Sem muito glacê pra enfeitar o bolo.

E quando a gente entrou no bagalô, que era lindo e tudo, com lareira e cestinha de flores em cima da mesa, ficamos olhando um pra cara do outro sem saber o que fazer. E parecia que a gente nem tinha lá muito interesse, que tava em Mauá por engano, que tinham trocado o par no meio do caminho e, lá, só dentro da casa, a gente tinha se dado conta. Ué, acho que não tem lá muito a ver.

Mas era só um jeito de quem tava meio sem jeito mesmo. Quando a intimidade chega rápido demais, pelas circunstâncias e não pela convivência. E você fica quieto, sem ação, esperando pra ver como o outro age, depois de olhar assim tão de perto.

Eu desconjuntada e o Carlos com a cara de quem deixou o carro atolar na lama, já lá quase na linha de chegada. Tinha ficado engatado no meio de três pedras, na porta da pousada. Ele encharcado tentando empurrar com força a traseira e nada do bicho mover um milímetro. Só as pernas do Carlos que escorregavam, patinando na terra. E ele caía e levantava. No joelho esquerdo descia um fio de sangue e os óculos, molhados, vinham tortos no rosto. Lá pelas tantas tinha engasgado do esforço e da boca saiu uma espécie de vômito. E eu fingi que não vi, que era pra ele não se sentir constrangido. Mas o Carlos achou que era só falta de atenção mesmo, indiferença, coisa de quem tinha ficado com nojo.

E, em pé no quarto, com a porta fechada, só conseguimos pensar numa coisa: foto. Vamos tirar uma foto. Fingimos que era engraçado e sacamos a máquina da bolsa. Saiu aquela foto que eu tinha achado na caixa de guardados. Ele com um sorriso forçado, apontando com o dedo pro joelho. E o fim de semana passou meio morno e os dois foram pra casa com uma sensação de frustração, querendo que o tempo voltasse e desse pra viver tudo de novo.

Da história ficou aquela foto amarelada, guardada no fundo de uma caixa por anos. Olhava pra ela e estalava a língua, balançava a cabeça. E ria. Agora, fazer o quê? Ria. Coloquei no meu quadro de cortiça...