Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

sexta-feira, março 28, 2008






O que mais me impressionou foram as fotos em preto e branco. Os quartos vazios, os muitos cachorros circulando, móveis velhos e pequenos objetos de uma vida solitária espalhados pelos cantos: uma xícara, um cobertor jogado em cima de uma poltrona, chinelos encostados ao pé da cama. Não era pobreza o que se via, mas simplicidade. Na capa vinha o seu retrato em close, o rosto marcado pelas rugas, os cabelos brancos desalinhados.
Na parte de dentro do Caderno de Literatura dedicado a ela estava uma longa entrevista e a história de sua vida. E foi assim que eu fiquei sabendo que Hilda Hilst era uma moça bela, de vida boêmia e namorados mil. Tinha fortuna, morava em São Paulo, passou meses viajando sozinha pela Europa e chegou a ter um caso com Marlon Brando (dizem!). Tinha livros publicados desde os 20 anos. Mas aos 33 resolveu se mudar para uma fazenda a onze quilômetros de Campinas. Deixou as festas de lado, os namorados, a vida boêmia. Tudo pela literatura. Os dias a escrever e ler, escrever e ler, escrever e ler. Talvez não fosse tão mal assim.

E a idéia nem foi dela. A inspiração de optar pela solidão e se dedicar aos poemas e romances veio de outro escritor: o grego Nikos Kazantzakis. Autor de “Cartas a El Greco” e que defendia que só no isolamento o homem pode conhecer a si mesmo e estudar a complexa natureza humana. Talvez tivesse razão. Talvez. Provavelmente, também ele tenha feito o mesmo. Ainda não sei. Ainda.

E porque não poderia ser este, justamente este, o motivo do sumiço do escritor da minha vizinha? A necessidade de paz, concentração e de horas dedicadas aos livros. Ok. A idade avançada e o sucesso profissional depunham contra a minha teoria. Mas quem sabe ele não chegou à conclusão de que sua literatura era falha, superficial ou que não tinha escrito todos os livros que desejava? Quem sabe o problema não era um único livro, o livro. A obra-prima que pretendia deixar para a posteridade. Aquele que valia a pena o sacrifício, que demandava dedicação exclusiva, total.

Onde poderia estar agora? Escondido numa fazenda no interior de Minas? Numa casa de madeira em Visconde de Mauá? Pode ter ido para a Europa também. Como a polícia não cogitou esta hipótese? Quantos não fizeram o mesmo ao longo da história? Por que não ele? Passei a pesquisar os escritores que achavam que a literatura não podia ser dividida com mais nada.