Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

segunda-feira, maio 22, 2006

mi casa, su casa

Querido F.,
Foi de madrugada. E a minha televisão de repente ficou preta-e-branca. Laura Cardoso circulava por um apartamento, suspirando de saudades da Espanha natal, sentindo ainda o cheiro da casa distante. Na sua sala, uma TV também sintonizada e o rosto do ex-presidente Collor, anunciando um plano econômico que acabaria com a poupança de muita gente. Lá, junto com o dinheiro perdido, ia o sonho da viagem.
E me lembrei de quando você arrumou as malas para Paris. Tava frio no Rio e cê chegou lá em casa com uma pilha de guias turísticos, pra gente traçar o roteiro dos primeiros dias na França. E a hora da partida chegou e durante uma semana, duas, não me lembro mais quantas, acordei de noite sobressaltada com um cheiro de cigarro forte pelos cantos. Não fumo, não guardo cinzeiros usados e uma faxineira vinha toda semana esfregar paredes e piso. Não adiantava. Era como se, todo dia de noite, você aparecesse novamente na sala, com a pilha de guias, as folhas marcadas com pequenos papéis coloridos. Meses depois, me ligou com voz chorosa. O Louvre era lindo; as aulas na universidade, ótimas; uma namorada nova preenchia as noites. Mas tinha um vazio não sei onde. Uma vontade de casa.
E na tela da TV, no momento mesmo em que recordei desta cena, Fernanda Torres apareceu jovem, com os cabelos voando, caminhando pelas ruas de Lisboa e lamentando o sotaque que saía pela boca dos outros e os acentos desencontrados que os outros escutavam da sua. Estrangeira. Não adiantava falar a mesma língua. Lá estava o sotaque. Com residência, trabalho, amigo e, mesmo assim, estrangeira. A casa ficava onde? Onde estava o seu lugar?
E me senti um pouco como Fernanda. Passeio pelas ruas do Rio e sinto falta da Petrópolis da infância, de uma inocência que eu achava que existia atrás das janelas de madeira. Mas quando volto pra visitar um parente, não me encaixo mais. Fiquei no meio. Sou a própria Rio-Petrópolis. Uma mistura de menina de interior com senhora de cidade grande e, nunca mais. Digo. Nunca uma coisa só. Sempre vazio.
É como uma visita pelos corredores do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. A árvore da língua, o jogo que mostra influências e origens das palavras que falamos hoje. Uma mistura do que diziam os índios, os escravos, os portugueses. Nem mais uma coisa, nem outra. Uma transformação sem retorno. Uma língua que viaja, como as pessoas, e nunca mais é a mesma.
E enquanto Fernanda dirigia desesperada em direção à fronteira, olhando de esguelha pra um navio parado que leva pra longe, junto cenas do passado na cabeça. Penso na palavra casa e não aparecem ruas, residências, paisagens. Vejo encontros com amigos, natais em família, pessoas, pessoas, pessoas. E penso que, se pudesse reunir todos numa cena só, todos os VIPs da minha vida num único encontro, resolveria o meu problema. Só assim.
Até,
M.