Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

domingo, novembro 02, 2008

A biblioteca


Chegaram três caixas de livros ontem do Chile, estão no meio do quarto dos fundos, exatamente no mesmo local onde os carregadores deixaram. Tantos livros que mesmo que eu bote toda a minha força contra a parede de uma das caixas, nada se move. Tantos que pedi para instalarem mais cinco prateleiras numa das paredes, distribuídas do teto até o chão. E olhando agora para eles, reunidos em três blocos compactos, não sei se haverá lugar para todos. Tantos que não consigo mexer em nada. Fico olhando para as estantes vazias e para os volumes encaixotados, sem saber por onde começar.

Fernando monta tabelas no Excel. Achei incrível, mas cada um dos livros está anotado numa longa folha de papel e ele organiza um por um na tabela, planejando sua posição na estante de acordo com uma lógica que não consigo muito entender. Parece que os russos vão ficar perto do teto, mas Crime e castigo vem antes de Noites brancas, que é seguido de Irmãos Karamazóv. E antes que eu abrisse a boca para opinar, ele me explicou que a ordem não era cronológica, mas que Raskólnikov é um rapaz orgulhoso e nunca ia admitir ficar em outro lugar que não em primeiro. Desisti. Já ia me virando quando vi outra lista enorme em cima da mesa.

- Ih, vamos ter livros repetidos! Estes todos aqui eu também tenho. Ainda bem que vão ficar em prateleiras separadas.

- Estes são os seus, Magnólia. Vou organizá-los também. Assim, nossa biblioteca vai estar com todos os livros catalogados e vai ser mais fácil de consultar.

Virei as costas como uma menina que há muito já deixei de ser e saí batendo pés e portas, com um estrondo rouco me acompanhando até o quarto. E, minutos depois, com os olhos marejados e mais calma, voltei para dizer que nos meus ninguém mexia.

- Mas estão de qualquer jeito! Não há ordem nenhuma...

Como não? E mostrei, meio envergonhada, com a culpa de quem minutos antes tinha olhado com desdém para sua tabela de Excel, que na minha parede os guias de viagem ficavam perto do teto. Abri o de Londres e mostrei os bilhetes de metrô colados pelas páginas, as entradas de museus, as minhas fotos arrastando malas pelo aeroporto de Heathrow, com os cabelos louros que imitavam uma moda da época e a pele bronzeada de quem tinha vindo do verão carioca.

Nas prateleiras que ficam na altura dos meus olhos, guardo os melhores, uma coleção que eu poderia chamar de meus livros de cabeceira. Fernando me olhou com um sorriso disfarçado. Só uma indecisa como eu poderia ter feito uma seleção de favoritos tão extensa. Não importa. Me dava conforto ver os Machados seguidos das Lygias, acompanhando Clarices e Virginias. Era bom ter eles todos reunidos por perto.

Na prateleira debaixo, vários livros com a correspondência de escritores e (isso não contei), dentro deles distribui cartas que troquei ao longo da vida. No volume com a correspondência de Guimarães Rosa para um de seus tradutores, cartas que troquei, aos 22 anos, com um analista, quando fui passar dois meses circulando de mochila pela Itália. Toco a lombada e, ainda hoje, lembro de suas mãos expressivas e os óculos de aros finos. Ali, estão os bilhetes breves que me enviou como resposta, sempre ambíguos, sempre carinhosos.

Fernando me devolveu a lista, resignado. Não tive coragem de jogar fora. Achei bonito ver todos os meus livros enfileirados. Botei no mural da cozinha, junto com a carta de amor da vizinha.