Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

domingo, novembro 02, 2008

A biblioteca


Chegaram três caixas de livros ontem do Chile, estão no meio do quarto dos fundos, exatamente no mesmo local onde os carregadores deixaram. Tantos livros que mesmo que eu bote toda a minha força contra a parede de uma das caixas, nada se move. Tantos que pedi para instalarem mais cinco prateleiras numa das paredes, distribuídas do teto até o chão. E olhando agora para eles, reunidos em três blocos compactos, não sei se haverá lugar para todos. Tantos que não consigo mexer em nada. Fico olhando para as estantes vazias e para os volumes encaixotados, sem saber por onde começar.

Fernando monta tabelas no Excel. Achei incrível, mas cada um dos livros está anotado numa longa folha de papel e ele organiza um por um na tabela, planejando sua posição na estante de acordo com uma lógica que não consigo muito entender. Parece que os russos vão ficar perto do teto, mas Crime e castigo vem antes de Noites brancas, que é seguido de Irmãos Karamazóv. E antes que eu abrisse a boca para opinar, ele me explicou que a ordem não era cronológica, mas que Raskólnikov é um rapaz orgulhoso e nunca ia admitir ficar em outro lugar que não em primeiro. Desisti. Já ia me virando quando vi outra lista enorme em cima da mesa.

- Ih, vamos ter livros repetidos! Estes todos aqui eu também tenho. Ainda bem que vão ficar em prateleiras separadas.

- Estes são os seus, Magnólia. Vou organizá-los também. Assim, nossa biblioteca vai estar com todos os livros catalogados e vai ser mais fácil de consultar.

Virei as costas como uma menina que há muito já deixei de ser e saí batendo pés e portas, com um estrondo rouco me acompanhando até o quarto. E, minutos depois, com os olhos marejados e mais calma, voltei para dizer que nos meus ninguém mexia.

- Mas estão de qualquer jeito! Não há ordem nenhuma...

Como não? E mostrei, meio envergonhada, com a culpa de quem minutos antes tinha olhado com desdém para sua tabela de Excel, que na minha parede os guias de viagem ficavam perto do teto. Abri o de Londres e mostrei os bilhetes de metrô colados pelas páginas, as entradas de museus, as minhas fotos arrastando malas pelo aeroporto de Heathrow, com os cabelos louros que imitavam uma moda da época e a pele bronzeada de quem tinha vindo do verão carioca.

Nas prateleiras que ficam na altura dos meus olhos, guardo os melhores, uma coleção que eu poderia chamar de meus livros de cabeceira. Fernando me olhou com um sorriso disfarçado. Só uma indecisa como eu poderia ter feito uma seleção de favoritos tão extensa. Não importa. Me dava conforto ver os Machados seguidos das Lygias, acompanhando Clarices e Virginias. Era bom ter eles todos reunidos por perto.

Na prateleira debaixo, vários livros com a correspondência de escritores e (isso não contei), dentro deles distribui cartas que troquei ao longo da vida. No volume com a correspondência de Guimarães Rosa para um de seus tradutores, cartas que troquei, aos 22 anos, com um analista, quando fui passar dois meses circulando de mochila pela Itália. Toco a lombada e, ainda hoje, lembro de suas mãos expressivas e os óculos de aros finos. Ali, estão os bilhetes breves que me enviou como resposta, sempre ambíguos, sempre carinhosos.

Fernando me devolveu a lista, resignado. Não tive coragem de jogar fora. Achei bonito ver todos os meus livros enfileirados. Botei no mural da cozinha, junto com a carta de amor da vizinha.

segunda-feira, outubro 06, 2008

mais um para o café da manhã

Da janela eu via ele se afastando. As sandálias de couro batendo no chão de pedra e o cabelo ainda molhado do banho frio que insiste em tomar toda manhã. Em casa ficou o cheiro forte do perfume, que se espalha pelo jornal, a maçaneta da porta e todo local que os seus dedos toquem. Saiu para comprar pão e voltou horas depois com um embrulho extra embaixo do braço. Me contou a história sem soltá-lo do colo, cortando um pedaço de bisnaga e besuntando a fatia com manteiga Aviador, evitando me olhar nos olhos.
O dia tava novo ainda e foi por isso que o barulho dos carros não tinha tomado conta de tudo. Passava perto de casa, o saco pardo já agarrado pela mão, quando ouviu algo baixo, mas constante. Difícil precisar de onde saía o choro. Uma senhora de vestido vermelho passou assim rentinho dele e continuou com o andar firme pela rua, sem parecer escutar coisa alguma. Um surfista veio logo depois com uma prancha grande demais para o seu tamanho e o Fernando ficou olhando atento os pés do moço tocarem o chão, num ritmo constante, que se aproximou e se afastou sem se conter minuto algum, sem mudar a rota para detectar de onde vinha aquele barulho estranho. Talvez não existisse som algum. Talvez só ele escutasse. Uma voz dentro de seu ouvido que ninguém conseguia notar.
Foi quando olhou para as rodas de um Gol vermelho parado na esquina e viu alguma coisa preta se mexendo de leve. Quanto mais se aproximava, mais escutava com nitidez. O preto levantava e descia como num respiro, soltando um sonzinho constante e desanimado.
Era pequeno, magro, cabia na palma da mão e me olhava do seu colo enquanto a história ia ganhando forma, abanando um rabo fino e com pouco pêlo. Chegou na minha casa sem choro algum e parecia consolado, aninhado nas mangas grossas do casaco. Peguei o cachorrinho e levei para a área de serviço, com a Juma curiosa e animada atrás de mim.
Temos um novo integrante em casa. Alfredo gosta de Papita com água morna.

domingo, setembro 28, 2008

A nuca fazia uma curva e era de um branco que eu nunca tinha imaginado que existisse, pontilhado de pequenas sardas avermelhadas. E ele estava de cabeça abaixada, lendo com atenção uma carta que eu tinha acabado de roubar da portaria (confesso que fiquei compulsiva. Agora, não consigo passar sem arrumar um jeito de pegar uns envelopes “emprestados”). Rasgamos mesmo, sem nos preocupar em ferver uma água na chaleira para que o vapor soltasse a cola com cuidado. Mas depois de ler o que vinha dentro, me deu uma dó profunda. Porque essa era uma carta de amor. Sem remetente como as outras, sem destinatário. Não consigo decifrar, pelo texto, se foi escrita por mulher ou homem, mas veio a lápis, com letra embaralhada e disforme, como se tivesse sido feita num ímpeto.
E fiquei com o papel numa das mãos e o envelope rasgado na outra, sem saber o que fazer com os dois. Eu que já me sentia tão dona de todas elas e, de uns tempos pra cá, já as abria como se tivessem chegado pra mim, como quem abre um envelope de figurinhas comprado na banca, ansiosa e apressada. Eu que vinha lendo os textos e comentando com o Fernando os engraçados e curiosos e colando no quadro de cortiça da cozinha os que mais me agradavam, criando teorias que dessem sentido para o conjunto. Foi só nesse momento que me dei conta: “Estamos lendo a correspondência de outra pessoa!”
E essa era uma carta de amor. E com o papel nas mãos eu tinha certeza de que, agora, descolada de todas as outras, fora do seu envelope de origem, nunca mais acharia o seu caminho. Palavras de amor que ficaram paradas no meio. Escritas de forma apaixonada e embaralhada, com tanto sentimento que nem se entendia direito. Senti uma vergonha profunda. Fernando me olhava do canto, quieto, imóvel, com a mão apoiada na boca e os olhos claros que quase nem piscavam.
Estendi o papel sem muita convicção e foi nesse momento que ele abaixou a nunca e ficou estudando as letras que tanto tinham me perturbado. Foi quando notei que a sua pele era branca que só, mas ao mesmo tempo vinha manchada, pequenos pontos cor de ferrugem. Foi quando vi onde os seus cabelos nasciam e que a gola da blusa fazia uma volta, caindo pelo pescoço. E que as suas mãos tinham veias saltadas e dedos grossos e fortes, mas que seguravam o papel de forma gentil. Pela postura curvada pra frente e toda a atenção que dedicava, senti que ele se importava.

quarta-feira, setembro 24, 2008

e se for a felicidade...

Fernando chegou do Chile e está hospedado aqui em casa. Pela quantidade de malas, imagino que vai ficar por semanas. E estamos passando tardes e mais tardes a descolar envelopes no vapor da chaleira. Talvez nem fosse necessário tanto cuidado. Mas no fundo ainda acredito que alguém vai aparecer para buscar o bolo de cartas um dia desses.
Descobri que o porteiro vem guardando os envelopes destinados à vizinha em cima das estantes onde fica a correspondência do condomínio. A quantidade começou a ficar tão grande, que ele passou a deixar tudo por cima do móvel. Roubei alguns. Ou melhor, peguei emprestado. Vou devolver todos bem fechados dentro de uns dias.
O primeiro que eu abri vinha com um texto estranho, descrevendo uma manhã na beira de uma piscina. A história vinha escrita em caneta preta, com uma caligrafia tão forte que quase chegava a furar o papel. O segundo vinha como uma tira de quadrinhos, esta abaixo.

Ainda não consegui entender o significado... Talvez sejam mensagens cifradas. Fernando começou a desenhar gráficos na cozinha.

sexta-feira, setembro 05, 2008

Uma manhã de exercícios na piscina

Era um exercício de respiração. Ele subia e descia, fazendo um bico engraçado com a boca toda vez que levantava da água. O sol estava fraco e talvez sentisse frio. Se a friagem incomodasse, teria levantado e corrido para a toalha aos saltinhos. Mas continuava lá. Trinta e um, trinta e dois...
_ Chega perto da borda?
Fui andando calmamente, mas ele tinha pressa. Alguma coisa tinha urgência de ser feita. Quando cheguei, passou as instruções.
_ Vou ficar embaixo d’água e você liga o cronometro logo que eu descer.
_ Sei. É para medir o tempo que consegue ficar sem respirar?
_ Isso.
Abriu a boca o mais que pôde e puxou o ar para dentro com força. Um, dois, três.... Foi. A cabeça embaixo d’água, o corpo boiando e eu lá, olhando os números no cronometro. Um minuto, dois... Fiquei preocupada e toquei numa parte do seu corpo. Recebi um safanão de volta. Estava vivo. Dois e meio, três... Repeti o gesto sem me preocupar com humores. Novo soquinho. Vivo. Quatro, quatro e meio...
Ele subiu abrindo a boca ao máximo.
_ Quanto foi?
_ Quatro e meio.
Não falou nada. Mas apareceu um meio sorriso no rosto e senti que o peito estufava de orgulho.
_ Tenho que chegar até cinco.
E lá ficou. Levantando e subindo. Minha função tinha acabado e voltei para a cadeira. Mas e se ele se machucar na piscina? E se o frio deixá-lo resfriado? E achava que estava lindo lá dentro. O cabelo grudado na testa e o biquinho engraçado aprisionando o ar dentro do peito.
_ Já está na hora do almoço.

Ele levantou e foi aos saltinhos buscar a toalha. Se aninhou nos meus braços e cobri sua testa de beijos. Me beijou de volta, na boca. Meu marido.

quarta-feira, setembro 03, 2008

Vi na TV que hoje está fazendo sol

O céu ficou dourado, azul, cinza. Já tirei casacos do armário, arrumei os maiôs enrolados na gaveta. Tirei todos de novo, comprei novas cangas e guardei o suéter de volta na estante perto do teto. Chegaram cartas. Li algumas, outras eu joguei fora. Desinfetaram o prédio, fiz faxina no apartamento, mas hoje de manhã encontrei uma baratinha francesa subindo pela parede da cozinha. Num dia, achei que precisava sair e apanhar sol. No outro, corri para dentro de casa e me refugiei num bolo de edredon perfumado.

Na porta ao lado, a vizinha sumiu e eu cansei de colar a orelha na parede cada vez que ouvia o trinco da fechadura dando voltas. O namorado famoso não inspira mais matérias nos jornais e os repórteres que subiam as escadas do prédio parecem ter se mudado pra outra parte, pra outra vida, pra outra história. Mas o porteiro fala que os bilhetes ainda chegam. Cartas endereçadas a ela ou a ele. Envelopes vezes com a letra redonda que a moça fazia com lápis, vezes com a dura fôrma de imprensa que ele reforçava com caneta Bic preta. De alguma forma, a vida continua.

segunda-feira, março 31, 2008

O dia em que descobri Amália Mirandas

Me identifiquei totalmente com Amália Mirandas, escritora portuguesa que viveu entre o fim do século XIX e o início do passado. Confesso que nunca tinha ouvido falar e que, algumas vezes, desconfio de que nunca tenha existido. Mas, o que importa? É uma boa história. Descobri sua existência pesquisando num sebo aqui perto de casa. Sua vida estava num livro escrito pelo catalão Javier Mattos. Num exemplar de 370 páginas, ele mapeou as escritoras que viveram na Espanha entre o fim do século XIX e início do XX. E foi isso o que Amália fez. Se casou aos dezessete anos, com um homem vinte e cinco anos mais velho e, por causa dele, se mudou para o Sul da Espanha, mais especificamente para Sevilha, a capital da Andaluzia.

Teve cinco filhas e comandava uma espécie de escola que funcionava em sua própria casa. Passava horas trancada dentro de um dos aposentos, um lugar destinado exclusivamente pra ela, escrevendo, escrevendo, escrevendo. O marido acreditava que se tratavam de cartas para os parentes distantes, mas Amália produzia romances.

Não quero entrar no mérito da qualidade de seus escritos. Não li nenhum. Mas posso imaginar o seu conteúdo. Parece que vejo as histórias acontecendo. Na época, Sevilha tinha cerca de 150 mil habitantes. Ela era de família rica, mas vinha do campo e caiu de uma hora para outra num centro urbano que começava a fervilhar, com mulheres elegantes caminhando pelas ruas. O que mais poderia escrever? Histórias românticas de moças casadoiras. Só podiam ser. Mas não apenas isso. Javier Mattos acredita que Amália escreveu cerca de dez romances, depois de pesquisar as anotações que a escritora mantinha num diário. Mas apenas quatro foram achados e tiveram sua autoria confirmada.

Um de seus textos contava a história de Don Juan Tenório, que disputava com o amigo Don Luís o número de mulheres que conseguia conquistar. Para provar que era melhor galanteador que o colega, propõe conquistar a própria noiva de Don Luís, moça pura e devota, recatada ao extremo, daquelas que nem se permitem encarar um homem nos olhos. E ele consegue. Encontra o verdadeiro amor, mas precisa se deparar com a vingança do noivo e de seus familiares.

Achei a história supimpa, baseada na lenda de Don Juan que já circulava pela época. Mas vai lá saber se foi apenas isso que a inspirou. Tenho aqui comigo que ela usou a lenda apenas para despistar o desejo de escrever uma história que mesclasse amor, traição e moças que escondem uma natureza outra, atrás de uma imagem séria e recatada. Quem sabe não falava de si? Vai saber...

Por muito tempo, a autoria da história foi dada a José Zorrilla, marido de Amália. Mas a descoberta de seu diário e muitas pesquisas posteriores, desfizeram o engano. Aliás, Zorrilla era poeta e dramaturgo e, talvez, alguns de seus textos tenham sido escritos pela própria esposa. Acho difícil que fossem todos, mas não duvido da mistura de alguns.

Onde está a solidão em nome da escrita nisso tudo? Calma. Chega agora. Quando o esposo morreu, Amália tinha cerca de 40 anos. A escola fechou e ninguém nunca mais viu seu rosto pelas ruas da Sevilha da época. O isolamento não veio por luto ou tristeza. Foi uma forma de recuperar o tempo perdido. Mattos acredita que mais da metade de seus livros foram escritos neste período.

E o que isso tem a ver com o escritor sumido da minha vizinha sem expressão? Não foi apenas o isolamento de Amália que me fez selecionar a sua biografia entre as minhas preferidas, mas a confusão na autoria dos textos. Quem escreveu as cartas? Quem escreveu os romances? Ando me fazendo estas perguntas e observando, cada vez mais atentamente, minha vizinha. Meu próximo plano é oferecer uma faxineira para a moça. Preciso saber se tem máquina de escrever em casa, computador, canetas tinteiro... O que faz com o tempo livre, estas coisas.

E por que me identifiquei tanto com a história de Amália? Bem... isso ainda não posso revelar. Ainda...

sexta-feira, março 28, 2008






O que mais me impressionou foram as fotos em preto e branco. Os quartos vazios, os muitos cachorros circulando, móveis velhos e pequenos objetos de uma vida solitária espalhados pelos cantos: uma xícara, um cobertor jogado em cima de uma poltrona, chinelos encostados ao pé da cama. Não era pobreza o que se via, mas simplicidade. Na capa vinha o seu retrato em close, o rosto marcado pelas rugas, os cabelos brancos desalinhados.
Na parte de dentro do Caderno de Literatura dedicado a ela estava uma longa entrevista e a história de sua vida. E foi assim que eu fiquei sabendo que Hilda Hilst era uma moça bela, de vida boêmia e namorados mil. Tinha fortuna, morava em São Paulo, passou meses viajando sozinha pela Europa e chegou a ter um caso com Marlon Brando (dizem!). Tinha livros publicados desde os 20 anos. Mas aos 33 resolveu se mudar para uma fazenda a onze quilômetros de Campinas. Deixou as festas de lado, os namorados, a vida boêmia. Tudo pela literatura. Os dias a escrever e ler, escrever e ler, escrever e ler. Talvez não fosse tão mal assim.

E a idéia nem foi dela. A inspiração de optar pela solidão e se dedicar aos poemas e romances veio de outro escritor: o grego Nikos Kazantzakis. Autor de “Cartas a El Greco” e que defendia que só no isolamento o homem pode conhecer a si mesmo e estudar a complexa natureza humana. Talvez tivesse razão. Talvez. Provavelmente, também ele tenha feito o mesmo. Ainda não sei. Ainda.

E porque não poderia ser este, justamente este, o motivo do sumiço do escritor da minha vizinha? A necessidade de paz, concentração e de horas dedicadas aos livros. Ok. A idade avançada e o sucesso profissional depunham contra a minha teoria. Mas quem sabe ele não chegou à conclusão de que sua literatura era falha, superficial ou que não tinha escrito todos os livros que desejava? Quem sabe o problema não era um único livro, o livro. A obra-prima que pretendia deixar para a posteridade. Aquele que valia a pena o sacrifício, que demandava dedicação exclusiva, total.

Onde poderia estar agora? Escondido numa fazenda no interior de Minas? Numa casa de madeira em Visconde de Mauá? Pode ter ido para a Europa também. Como a polícia não cogitou esta hipótese? Quantos não fizeram o mesmo ao longo da história? Por que não ele? Passei a pesquisar os escritores que achavam que a literatura não podia ser dividida com mais nada.


domingo, março 09, 2008

O dia da carta




Comecei com as palavras cruzadas. Uma chatice. Verdadeiros enigmas que me estimulam apenas a correr até as últimas páginas do livrinho atrás das respostas. Passei para a tapeçaria. Comprei uma tela aqui na esquina, alguns novelos de lã, desencavei as lições que minha mãe me dava em Petrópolis e dei início aos trabalhos. Já fiz cinco tapetinhos! Isto tudo para aproveitar o novo espaço que arrumei aqui em casa. Colado à porta de serviço, coloquei uma mesinha com cadeiras. Bem arrumadinho, com um vaso de plantas e tudo.

Foi assim, meio sem querer, enquanto desfrutava deste meu novo espaço, que descobri quando chegou a primeira carta. Era dia 5 de janeiro, um mês depois do sumiço. Saí para jogar o lixo e a vi no corredor. Achei que estava ainda mais magra e mais pálida, parecia frágil e ouvia sem se mover um homem alto e moreno dizer repetidas vezes:

- Não pode ser! Não pode ser! Por que ele faria isso? Por que mandaria esta carta justamente pra você?

E ela ouvia sem mover músculo. Ainda tentei me demorar, fingindo que a porta da lixeira tinha emperrado, mas, nada, daquela boca não saía palavra e tive que voltar para casa, com a Juma me seguindo de perto, desconfiada (até ela!) do encontro no corredor.

Me custou um bocado entender o que estava em volta daquelas quatro frases soltas. Não me perguntem como juntei a história. Tenho fontes. Só posso adiantar isso: tenho minhas fontes. Mas logo nas primeiras horas da manhã ela recebeu uma carta. Era dele. Peritos conferiram a caligrafia. Definitivamente, dele. Disse que estava embaixo da porta quando acordou, mas nem o porteiro e nem ninguém no prédio lembra de ter visto alguém entregando uma correspondência.

Isso, depois que tudo parecia resolvido. Depois de um enterro simbólico ter se realizado. Depois de a imprensa alardear o namoro secreto do escritor e do filho ter reivindicado respostas, acusado minha vizinha de assassinato, cobrado explicações em relação aquele relacionamento secreto que ninguém nunca tinha ouvido falar. Juntei os recortes de jornal com todas as declarações da família.

“- Desde que ficou viúvo meu pai nunca mais se relacionou com mulher nenhuma. Passava os dias em casa, escrevendo e lendo.” O Globo, 29 de dezembro de 2007.

“- Ninguém viu ele pular na água. As buscas se basearam apenas no depoimento dela. Mas quem é esta mulher? Onde está meu pai? O que fez com ele?” Época, 16 de dezembro de 2007.

“ – Estive com ele no dia do sumiço. Não comentou que ia caminhar na Lagoa. Não disse que estava saindo com alguém, muito menos que estava apaixonado. Estava satisfeito e só. Não me pareceu como uma pessoa que quisesse cometer suicídio” Veja, 16 de dezembro de 2007.

Tive vontade de ligar para a imprensa, de descobrir o telefone deste filho e ter com ele dois dedos de prosa que fosse. Dizer que, sim, eu já tinha visto os dois juntos. Uma, duas vezes, mas vi. Não, não pareciam tão apaixonados. Mas quem olhar a minha vizinha pela rua vai entender. Não há como saber o que sente, pensa, o que está prestes a fazer. Talvez estivesse apaixonada. Como saber? Um rosto sempre sem expressão, pra dentro, contido. Mas em uma das vezes, juro, eu vi, tenho certeza, quase certeza absoluta, de que estavam de mãos dadas. Bem dadas. Atadas mesmo.

Assim que viu o envelope, ela achou que era uma propaganda. Pegou. Não havia nada escrito em nenhum dos lados. Um envelope bege, como tantos outros que encontramos nas papelarias. E abriu sem dar grande importância. Numa folha pautada, pequena, estava um poema. A letra inconfundível e, antes mesmo de ler qualquer palavra, duas lágrimas desceram pelo rosto (Me deixem! Me deixem! Não posso imaginar duas lagriminhas? Ok, eu não vi a cena, mas elas devem ter existido!).

Achou que era um sinal. Se tinha mandado uma carta, estava vivo. Um poema. Palavras de saudade. Versos de quem sente a distância. Eram palavras dele. Embaixo, uma frase que ainda não consegui entender direito: “Junte todos. São o meu presente para você”.

Desde então, todo dia 5, a cena se repete.


sábado, março 01, 2008

O sumiço no lago (na verdade, foi na Lagoa, mas lago ganha um ar mais misterioso)

Ando ocupada. Não preciso ligar a novela quando o relógio marca nove horas, assistir filme de suspense em algum canal da TV a cabo (é lógico que eu tenho! Por que todo mundo sempre acha que idoso não tem TV por assinatura ou computador?) ou ler a seção do jornal que traz as notícias da cidade (sem dúvida, a opção mais apavorante das três. Para dias em que você anseia por emoções fortes). Está acontecendo no meu prédio mesmo. Aqui: Copacabana, Rio de Janeiro.

Não quero concorrer com o Espinosa, do Garcia-Roza, e perder os dias andando atrás de pistas no Bairro Peixoto, mas é inevitável que me interesse. Olhar a movimentação pela janela, abrir a porta para jogar o lixo no momento exato em que conversas acontecem no corredor (coincidências fazem parte da vida!), tirar informações truncadas em conversas aparentemente inocentes com o porteiro. Me sinto, de uma hora para outra, um pouco Miss Marple, num dos livros da Agatha Christie (sim, admito que li alguns na adolescência).

É um caso que envolve cartas que chegam, apesar de ninguém saber como, morte e amor. E estes três ingredientes foram suficientes para despertar o meu interesse. Ela mora no meu andar (veja que sorte!), num apartamento de fundos. Sempre fechada, calada, de poucos sorrisos. É jovem de aparência, mas tão séria que tenho a impressão de ser mais idosa do que eu, quando divido com ela o elevador e tenho a oportunidade de, disfarçadamente (claro!), observá-la de perto.

Ele? Confesso que vi apenas duas vezes, mas nunca tinha suspeitado que fosse um escritor de sucesso. Tão simples, tão comum, sem nenhum pingo do glamour que sempre imaginei que os autores de grandes livros levassem para a vida. Seus personagens, eu conheço, têm histórias movimentadas, dúvidas profundas, vícios e passados condenáveis. Ele sempre me pareceu sem graça e, por isso, infelizmente, nunca tinha prestado muita atenção na sua presença. Andava de bermuda, tênis e regata, mas era, pra mim, como se estivesse sempre de terno, de uniforme, misturado na massa. A diferença de idade entre os dois era gritante. Trinta anos? Mais, talvez. E, quando andavam de mãos dadas, despertavam a atenção mesmo de quem nunca teve preconceitos (como eu! Ok, ok, tenho alguns... Contra homens de terno, por exemplo, não os que usam para trabalhar, mas os que valorizam o traje).

Foi num domingo de tarde, me falaram. Os dois estavam caminhando na Lagoa, roupas esportivas. Estava sol e o ambiente era movimentado, famílias, casais, crianças, gente de todo tipo andando e conversando. E os dois se sentaram num dos píeres para descansar, pernas estendidas, calmos. E, de repente, sem nenhum movimento que anunciasse a decisão, ele se levantou e mergulhou na água. Naquela água imunda da Lagoa, a mesma dos peixes volta e meia boiando, das ondas de fedor regulares, da aparência turva e lamacenta. E foi só nisso que ela se preocupou, quando, ao ver que ele demorava a voltar, resolveu sair em busca de ajuda num dos quiosques próximos.

Ninguém viu nada. E buscas foram feitas por mais de uma semana no local, com máquinas removendo o fundo, mergulhadores com lanternas e roupas a prova da podridão. Nada. Ninguém nunca mais viu o escritor por aqui, por ali, por lugar algum que fosse. Mesmo assim, depois de muito choro, roupas pretas, dias de óculos escuros, chegam recados.