Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

segunda-feira, março 31, 2008

O dia em que descobri Amália Mirandas

Me identifiquei totalmente com Amália Mirandas, escritora portuguesa que viveu entre o fim do século XIX e o início do passado. Confesso que nunca tinha ouvido falar e que, algumas vezes, desconfio de que nunca tenha existido. Mas, o que importa? É uma boa história. Descobri sua existência pesquisando num sebo aqui perto de casa. Sua vida estava num livro escrito pelo catalão Javier Mattos. Num exemplar de 370 páginas, ele mapeou as escritoras que viveram na Espanha entre o fim do século XIX e início do XX. E foi isso o que Amália fez. Se casou aos dezessete anos, com um homem vinte e cinco anos mais velho e, por causa dele, se mudou para o Sul da Espanha, mais especificamente para Sevilha, a capital da Andaluzia.

Teve cinco filhas e comandava uma espécie de escola que funcionava em sua própria casa. Passava horas trancada dentro de um dos aposentos, um lugar destinado exclusivamente pra ela, escrevendo, escrevendo, escrevendo. O marido acreditava que se tratavam de cartas para os parentes distantes, mas Amália produzia romances.

Não quero entrar no mérito da qualidade de seus escritos. Não li nenhum. Mas posso imaginar o seu conteúdo. Parece que vejo as histórias acontecendo. Na época, Sevilha tinha cerca de 150 mil habitantes. Ela era de família rica, mas vinha do campo e caiu de uma hora para outra num centro urbano que começava a fervilhar, com mulheres elegantes caminhando pelas ruas. O que mais poderia escrever? Histórias românticas de moças casadoiras. Só podiam ser. Mas não apenas isso. Javier Mattos acredita que Amália escreveu cerca de dez romances, depois de pesquisar as anotações que a escritora mantinha num diário. Mas apenas quatro foram achados e tiveram sua autoria confirmada.

Um de seus textos contava a história de Don Juan Tenório, que disputava com o amigo Don Luís o número de mulheres que conseguia conquistar. Para provar que era melhor galanteador que o colega, propõe conquistar a própria noiva de Don Luís, moça pura e devota, recatada ao extremo, daquelas que nem se permitem encarar um homem nos olhos. E ele consegue. Encontra o verdadeiro amor, mas precisa se deparar com a vingança do noivo e de seus familiares.

Achei a história supimpa, baseada na lenda de Don Juan que já circulava pela época. Mas vai lá saber se foi apenas isso que a inspirou. Tenho aqui comigo que ela usou a lenda apenas para despistar o desejo de escrever uma história que mesclasse amor, traição e moças que escondem uma natureza outra, atrás de uma imagem séria e recatada. Quem sabe não falava de si? Vai saber...

Por muito tempo, a autoria da história foi dada a José Zorrilla, marido de Amália. Mas a descoberta de seu diário e muitas pesquisas posteriores, desfizeram o engano. Aliás, Zorrilla era poeta e dramaturgo e, talvez, alguns de seus textos tenham sido escritos pela própria esposa. Acho difícil que fossem todos, mas não duvido da mistura de alguns.

Onde está a solidão em nome da escrita nisso tudo? Calma. Chega agora. Quando o esposo morreu, Amália tinha cerca de 40 anos. A escola fechou e ninguém nunca mais viu seu rosto pelas ruas da Sevilha da época. O isolamento não veio por luto ou tristeza. Foi uma forma de recuperar o tempo perdido. Mattos acredita que mais da metade de seus livros foram escritos neste período.

E o que isso tem a ver com o escritor sumido da minha vizinha sem expressão? Não foi apenas o isolamento de Amália que me fez selecionar a sua biografia entre as minhas preferidas, mas a confusão na autoria dos textos. Quem escreveu as cartas? Quem escreveu os romances? Ando me fazendo estas perguntas e observando, cada vez mais atentamente, minha vizinha. Meu próximo plano é oferecer uma faxineira para a moça. Preciso saber se tem máquina de escrever em casa, computador, canetas tinteiro... O que faz com o tempo livre, estas coisas.

E por que me identifiquei tanto com a história de Amália? Bem... isso ainda não posso revelar. Ainda...

Um comentário:

Eduardo Lamas Neiva disse...

Eu sei por que você se identificou com Amália, mas também não posso revelar. Por enquanto...rsrsrs Ótima história.
Beijos,
Edu.