Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

sábado, agosto 19, 2006

receita de peixe

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia Prado estava no palco declamando poemas, contando histórias. Lembrou do passado. De uma vez que foi na TV ler um poema sobre um casal e recebeu uma carta indignada de uma professora, chamando de machismo a história de uma mulher que levantava no meio da noite só para limpar os peixes que o marido trazia da pesca. Quer dizer que devemos voltar ao século passado? Servir aos homens sempre? E Adélia lá, rindo da lembrança. Achando graça de tudo.
Não acompanhei a risada. Bati na testa. Anta! Eu seria capaz de fazer um comentário desses. Não em relação ao machismo. Mas era capaz de ler um poema bonito que nem aquele e interpretar com meus preconceitos. E lembrei de quando li uma entrevista sobre ela numa revista literária. Numa das perguntas, dizia que era católica praticante e o repórter ainda reforçava o quanto sua obra falava de Deus. E eu criei este rótulo estúpido. Adélia para mim passou a ser sinônimo de quem propaga em seus versos sua religiosidade. Quanta ignorância... Não que eu não tenha a minha, mas implico com quem estampa na camisa suas crenças. Com esta idéia na cabeça, não quis ler mais poema nenhum. E ali estava eu na Flip, tão encantada com a pessoa, tão emocionada com a obra e em como ela conseguia ressaltar a beleza do cotidiano, da vida, da convivência.
“Só as pessoas equivocadas quanto à natureza do fato literário repudiam um livro por sua casuística religiosa. O enredo ou tema de um livro não é o que o torna bom ou mau. Seu valor e desvalor têm a ver com a “forma”, apenas”, dizia Adélia na entrevista. Enxugando os olhos depois de ouvir seus versos, tive que concordar plenamente.