Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

domingo, março 15, 2009

Dedos

Os dedos tocavam o teclado com delicadeza. Só dois. Os outros se armavam como se estivessem em alerta para alguma coisa, qualquer uma, talvez nenhuma, mas sempre alertas. Não procuravam letras, já sabiam o caminho e, além de delicados, eram ágeis, decididos. Nas mãos, unhas cuidadas, limpas, certas, provavelmente semanalmente lixadas. E as mesmas manchinhas cor de ferrugem que acompanhavam todo o corpo estavam ali também. Muito branca, uma pele que, em alguns pontos, dava a impressão de ser transparente, com o desenhos de veias azuis à mostra.

Agora, largavam o teclado e buscavam um livro, quer dizer, alguma coisa dentro de um livro. Viravam páginas com ansiedade e um dos dedos acompanhava linhas de letras, uma após outra. Foi uma operação que, pelo menos para mim, pareceu demorar horas. Dezenas de páginas viradas, talvez centenas, milhares (quem sabe?). Vi no momento exato em que acharam. Uma das mãos se encolheu sobre o papel, formando uma espécie de caracol com os dedos curvados, com dobrinhas gordas que desenhavam uma cara. Se mexesse a mão, a cara ganharia vida, falaria. Mas ele não deveria saber que aquela mão podia tanto.

Meus olhos iam pelo meio, viam tudo num entrepálpebras. Mas ainda vi quando o livro se fechou e elas se deixaram apoiar por instantes na capa dura. Depois, sumiram do meu campo de visão, deixando um vazio naquela cena: computador, livro, estojo com canetas coloridas. Tudo abandonado numa mesa agora sem função. Reapareceram ao meu lado, acariciando meu braço. Até me abraçarem e ficarem aí paradas. Os dedos gordos, as sardas vermelhas, as unhas cuidadas. Podia dormir em paz. E nada mais tinha importância.