Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

quinta-feira, dezembro 28, 2006

OOOOOOOOOOMMMMM...

...estou ocupada. Como aqueles avisos que as pessoas colocam no messenger. Podem até me ver andando pela rua, falando pelo telefone, navegando pela internet. Mas estou ocupada. Uma plaquinha vermelha com um tracinho branco bem no meio. E, sim, tudo bem, isto tem a ver com o fim do ano. Mas não com estas coisas de fazer retrospectivas ou uma lista de metas e estratégias para 2007. Não estranhem se me virem arrastando um carrinho de feira pela rua, lotado de plantinhas embaladas em sacos plásticos. Ou se passarem pela portaria do prédio e sentirem um cheiro insuportavelmente forte de incenso. Ou olharem pela janela e acharem que tem uma velinha iluminando o ambiente. Tem mesmo. Vou sentar em cima da cama, cruzar as pernas, entoar um mantra e esperar 2007 pensando no branco. Imaginando o nada sem imagens intermediárias. A hora é de tentar paz. E não me inventem viagens mirabolantes, projetos cheios de aventuras, amores de explodir o coração. São três dias. Três dias só e a luz fica verde novamente. Por enquanto, ocupada....

segunda-feira, novembro 27, 2006

o dia em que o contra-regra tirou folga

Encontrei, numa caixa de guardados, uma foto do Carlos. E me lembrei de uma viagem que fizemos. A estrada enlameada de Visconde de Mauá e foi só o carro engatar na porta da pousada pra cair um pé d´água de novela das oito. Eu me espremia embaixo de um guarda-chuva florido que a recepcionista foi buscar atrás do balcão e era mais em sinal de protesto mesmo, uma forma de reclamar com o tempo a água que ele deixava cair lá de cima. Porque não adiantava nada, era daquelas chuvas de novela, como eu disse. Quando parece que a atriz entrou embaixo de um chuveiro ligado no máximo e um bando de ventiladores fazem a água dançar de um lado pro outro e enchem o chão de poçinhas bem no lugar onde a gente tá botando o pé. Parece tudo planejado. Pra deixar a roupa grudando no corpo. E quando você pensa que o guarda-chuva tá cobrindo pelo menos a franja do penteado, vem um vento não sei de onde e vira ele todo pra cima. E lá se vai o penteado. A água escorrendo na cara e a franja grudada na testa.

E me lembro de sentir vergonha. Tinha feito uma mala com roupa nova, os trajes combinando pro fim de semana. Unha feita e tudo mais. E foi só pisar no tal do paraíso verde, pra um céu azul, sem nuvens, cismar em jogar água aos montes de lá. E não dava mais pra disfarçar nada. Logo do começo, de cara, era aquilo ali e pronto. Com o cabelo grudando na testa, a roupa colada no corpo, respingos de lama cobrindo as pernas, eu era eu mesma. Daquele jeitinho lá. Pegar ou largar. Sem muito glacê pra enfeitar o bolo.

E quando a gente entrou no bagalô, que era lindo e tudo, com lareira e cestinha de flores em cima da mesa, ficamos olhando um pra cara do outro sem saber o que fazer. E parecia que a gente nem tinha lá muito interesse, que tava em Mauá por engano, que tinham trocado o par no meio do caminho e, lá, só dentro da casa, a gente tinha se dado conta. Ué, acho que não tem lá muito a ver.

Mas era só um jeito de quem tava meio sem jeito mesmo. Quando a intimidade chega rápido demais, pelas circunstâncias e não pela convivência. E você fica quieto, sem ação, esperando pra ver como o outro age, depois de olhar assim tão de perto.

Eu desconjuntada e o Carlos com a cara de quem deixou o carro atolar na lama, já lá quase na linha de chegada. Tinha ficado engatado no meio de três pedras, na porta da pousada. Ele encharcado tentando empurrar com força a traseira e nada do bicho mover um milímetro. Só as pernas do Carlos que escorregavam, patinando na terra. E ele caía e levantava. No joelho esquerdo descia um fio de sangue e os óculos, molhados, vinham tortos no rosto. Lá pelas tantas tinha engasgado do esforço e da boca saiu uma espécie de vômito. E eu fingi que não vi, que era pra ele não se sentir constrangido. Mas o Carlos achou que era só falta de atenção mesmo, indiferença, coisa de quem tinha ficado com nojo.

E, em pé no quarto, com a porta fechada, só conseguimos pensar numa coisa: foto. Vamos tirar uma foto. Fingimos que era engraçado e sacamos a máquina da bolsa. Saiu aquela foto que eu tinha achado na caixa de guardados. Ele com um sorriso forçado, apontando com o dedo pro joelho. E o fim de semana passou meio morno e os dois foram pra casa com uma sensação de frustração, querendo que o tempo voltasse e desse pra viver tudo de novo.

Da história ficou aquela foto amarelada, guardada no fundo de uma caixa por anos. Olhava pra ela e estalava a língua, balançava a cabeça. E ria. Agora, fazer o quê? Ria. Coloquei no meu quadro de cortiça...

terça-feira, novembro 07, 2006

depois...

Tudo o que me inspira hoje é uma música do Los Hermanos. Uma em que o cantor termina com uma série de ãããããnnnnããããããnnnns. Um em cada tom. Que começa com...

... ah, depois eu escrevo...

Só tenho vontade de estender meus pés em cima da cadeira, calçados com havaianas (e olhe lá) e esticar os braços até achar que estou crescendo. Estou de férias. Igual ao cara da música que se permite largar o corpo em cima de um sofá... Férias. Não quero saber se apareceu um novo restaurante na Dias Ferreira, se a moda agora é comer lichia no café da manhã, se o Coqueirão está ultrapassado, se descobriram que iogurte de maracujá é a bebida da estação, se os moderninhos de Ipanema vão tomar banho na laje do Dama de Ferro no pós-praia. O horário de verão começou no domingo, as lojas da cidade já estão prontas para o Natal e daqui a pouco (eu sei) as revistas e matérias de comportamento vão tentar nos convencer de que coisas fantásticas, incríveis, estão tomando a cidade, novas manias, novas histórias. E que nós precisamos, urgente, nos atualizar. Preguiçaaaaaa... Quando o verão chegar, quero férias. Deixa o verão pra mais tarde...

Deixa eu decidir é cedo ou tarde,
espere eu considerar,
ver se eu vou assim chique-à-vontade,
qual o tom do lugar

Enquanto eu penso você sugeriu
um bom motivo pra tudo atrasar
E ainda é cedo pra lá,
chegando às seis tá bom demais!
Deixa o verão pra mais tarde...

Uh ah ãã aeãeã

Não tô muito a fim de novidade
fila em banco de bar
Considere toda a hostilidade
que há da porta pra lá!

Enquanto eu fujo você inventou
qualquer desculpa pra gente ficar
E assim a gente não sai
que esse sofá tá bom demais!
Deixa o verão pra mais tarde...

Uh ah ãã aeãeã

E eu digo cá entre nós
deixa o verão pra mais tarde...

Uh ah ãã aeãeã

quarta-feira, outubro 04, 2006

Ester me convidou...

Eu não tinha como dizer não. Ester me ligou na sexta de tarde e foi ditando o endereço por telefone.

_ É na Glória. Na mesma rua da Termas Rio. Mas avisa ao taxista que o bar fica na esquina da via da Termas com outra pequenininha, paralela àquela dos travestis!

E o endereço veio assim, sem nenhum nome de rua, mas cheio de indicações inconfundíveis, inesquecíveis. E, enquanto ela falava, eu ficava pensando o que afinal de contas a Ester ia fazer lá. Ester. Aquela que aluga uma van toda vez que o Miguel Falabella estréia peça nova no Shopping da Gávea. Lembra? Pois, então. Fui. Com todas as direções na cabeça e um papelzinho com o nome do bar escrito em caneta Bic azul royal: Beco do Rato.

Confesso que tive vergonha do motorista. Não sou uma senhora tão moderna assim. E, antes de sair despejando as diretrizes, falei que ia a um samba num barzinho. Que era convite de uma amiga antiga e querida. E, mal as palavras saíram da boca, senti mais vergonha ainda de ter dado explicações. Não dava mais pra engoli-las de volta. Já tinham ido.

Foi fácil de achar. Dizem que o lugar tá famoso. Que nas quintas de noite vira cinema, com tela ao ar livre. Mas eu, que (repito) não sou moderna, desconhecia. No dia em que fui não tinha cinema. Era carnaval. As pessoas lotavam a rua e um monte de mesinhas, decoradas com garrafas de cerveja, completavam o espaço. Num cantinho, na frente de uma parede com pôsteres de uma seleção brasileira das antigas, um grupo tocava samba. E foi bonito de ver. Pelé comemorava um gol lá atrás, na foto de um cartaz, com Garrincha ao fundo correndo pro abraço, e todo mundo cantava e acompanhava a música com palmas. Cada letra triste que só, mas o ritmo era alegre e enquanto o cantor ia desfiando amarguras, amores não concretizados, paixões interrompidas, a gente ria e dançava.

Juro que sambei. Sem quase mexer os pés, se isso é possível. Rebolando desengonçada. Esquecida de quem quer que estivesse à volta. Ester era só sorrisos. Está namorando um compositor agora, ou coisa parecida, mas me fez jurar que não contava a história pra ninguém. Calo, portanto.

Lá pelas tantas, vi uma menina cheia de piercings e cabelo picotado. Na blusa preta, uma estampa com o cartaz do filme Jules e Jim. Os três personagens correndo sorridentes. Em cima da foto uma frase dizia que nada é perfeito e outra completava com um nada é eterno. Depois de três copos de cerveja (tá... Tá certo. Talvez um pouco mais) achei que fazia todo sentido. Que era assim mesmo. E era bonito que fosse.

Fui embora prometendo voltar. No dia seguinte, contei a história pro Zé, meu porteiro. Ele ouviu desconfiado, analisando minha figura em pé, segurando a coleira da Juma com a pontinha dos dedos. Disse que ia. Que um dia pisava por lá. Mas deve ter achado que a idade, enfim, anda fazendo efeito por aqui. Quem sabe? Talvez esteja.
Até,
M.

sexta-feira, setembro 08, 2006

entre quatro paredes

Querido F.,

Há cerca de um mês, Marisa Monte solta a voz na minha vitrola (sim, sou antiga e, mesmo com estas bolachas prateadas, na minha casa o aparelho de som vai sempre se chamar vitrola). Abro a porta do quarto de manhã e uma voz afinada começa a cantar:

Eu só não te convido pra dançar
Porque eu quero encontrar com você em particular
Há tempos tento encontrar um bom momento
Alguma ocasião propícia
Pra que eu possa pegar sua mão, olhar nos olhos teus
Seria bom, quatro paredes, eu, você e Deus


Procuro explicar o meu sentimento
E só consigo encontrar
Palavras que não existem no dicionário
Você podia entender meu vocabulário
Decifrar meus sinais, seria bom


Eu só não te convido pra dançar
Porque o assunto que eu quero contigo é em particular
Há tempos tento encontrar um bom momento
Alguma ocasião propícia
Pra que eu possa pegar sua mão, olhar nos olhos teus
Seria bom, quatro paredes, eu, você e Deus


Cantarolo outro som, finjo que não escuto, mas Marisa não desiste. Some por uns dias e, numa manhã inesperada, lá está ela de novo, martelando com voz potente minha cabeça. Hoje acordei e botei o disco bem alto. Estou dançando pela sala, Juma me acompanha aos saltos. Não me interrompa, por favor. É, por enquanto... só por enquanto... amanhã, quem sabe, consigo encher os ouvidos de algodão novamente.
Até,
M.

sábado, agosto 19, 2006

receita de peixe

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia Prado estava no palco declamando poemas, contando histórias. Lembrou do passado. De uma vez que foi na TV ler um poema sobre um casal e recebeu uma carta indignada de uma professora, chamando de machismo a história de uma mulher que levantava no meio da noite só para limpar os peixes que o marido trazia da pesca. Quer dizer que devemos voltar ao século passado? Servir aos homens sempre? E Adélia lá, rindo da lembrança. Achando graça de tudo.
Não acompanhei a risada. Bati na testa. Anta! Eu seria capaz de fazer um comentário desses. Não em relação ao machismo. Mas era capaz de ler um poema bonito que nem aquele e interpretar com meus preconceitos. E lembrei de quando li uma entrevista sobre ela numa revista literária. Numa das perguntas, dizia que era católica praticante e o repórter ainda reforçava o quanto sua obra falava de Deus. E eu criei este rótulo estúpido. Adélia para mim passou a ser sinônimo de quem propaga em seus versos sua religiosidade. Quanta ignorância... Não que eu não tenha a minha, mas implico com quem estampa na camisa suas crenças. Com esta idéia na cabeça, não quis ler mais poema nenhum. E ali estava eu na Flip, tão encantada com a pessoa, tão emocionada com a obra e em como ela conseguia ressaltar a beleza do cotidiano, da vida, da convivência.
“Só as pessoas equivocadas quanto à natureza do fato literário repudiam um livro por sua casuística religiosa. O enredo ou tema de um livro não é o que o torna bom ou mau. Seu valor e desvalor têm a ver com a “forma”, apenas”, dizia Adélia na entrevista. Enxugando os olhos depois de ouvir seus versos, tive que concordar plenamente.

segunda-feira, agosto 14, 2006

eu queria uma máquina fotográfica

Querido F.,

Por mais que quisesse, não conseguia ficar sozinha em Paraty. Na sexta de noite, encontrei Ester. Ela me viu de longe e veio de braços abertos por quase um quarteirão me encontrar. Como resistir?
_ Magnólia, quanto tempo? Te vi ontem passando e agora na Praça sozinha. Você veio só? Nada disso! Trate de se juntar a nós.
E me chamou para jantar com um grupo grande: dois casais de São Paulo, um namorado fotógrafo e uma penca de filhos. Tantos que não consegui fazer a ligação dos jovens com os adultos. Foi agradável. Vinho, boa comida e conversa idem. Mas, quando acabou, senti alívio em me ver só novamente.
A verdade é que gosto desta sensação de estar comigo quando viajo. De sentar numa daquelas mesinhas que eles montam no meio da rua e ficar observando as pessoas, o jeito de andar de cada um, como seguram as mãos uns dos outros. Fico feliz em ver que as minhas estão soltas.
E o ambiente é sempre tão cheio de detalhes, que chamam a minha atenção e me prendem por longos minutos, horas até. No sábado de tarde, sentei numa creperia e me peguei vendo as flores que crescem junto ao muro das casas. Nunca tinha notado. Coloridas, delicadas, nascendo do chão de pedras. Queria uma máquina fotográfica para registrar o momento. Mas sempre esqueço. E fiz força com os olhos pra fixar o enquadramento. Fiquei olhando fixo, até a vista ficar embaçada. Não queira esquecer aquela imagem.
E Paraty ainda é cheia daqueles caroços que cobrem todo o centro histórico. Com um grupo de amigos, em plena Flip, me sentiria exausta. Uma série de palestras, apresentações pelas ruas e uma cidade que exige o seu olhar a todo instante. Não é daquelas de asfalto lisinho. Você passa serelepe, sem nem se tocar por onde anda. É preciso prestar atenção. Um calçamento que freia os meus passos e me obriga a seguir o ritmo da cidade, a sua moda. Querer correr por suas ruas é o mesmo que passar a viagem com os joelhos ralados. Os saltos que insistem em pisar por ali quebram longo nas primeiras voltas. Por lá, os sapatos são baixos, as pessoas precisam andar lento e prestar atenção por onde pisam. Como dividir isso tudo com mais um grupo de amigos? É demais para uma senhora da minha idade!

Comprei muitos ingressos, assisti a nove palestras. O bom é que sempre descubro escritores. Nomes que vejo nos suplementos literários, nas estantes das livrarias, mas nunca leio. Por ali, os autores se revezam, lendo trechos de seus livros e falando sobre suas obras. Meu impulso é sair dos debates e ir direto comprar um exemplar. Acho sempre que devem ser ótimos. Mas o orçamento me freia e eu só anoto os nomes num caderninho que depois, eu sei, vou largar numa gaveta. Desta vez, tinham alguns tão jovens, tão talentosos, falando de recantos que eu só leio no jornal, vejo na Internet, sei que existem e só. E eles lá, com tão pouca idade e querendo descobrir o mundo. E eu, com tanta coisa aqui dentro que, mesmo idosa, ainda não consegui olhar pra fora...
Até,
M.

domingo, agosto 13, 2006

Flip

Querido F.,
Achei que ainda era jovem. E na quinta de tarde, lá estava eu descendo de um ônibus na rodoviária de Paraty. Duas mochilas nas costas e um mapa, desses de Internet, explicando como chegar na pousada que eu tinha reservado. Flip, né? Não dava para faltar.
Desci feliz, animada, ignorando o peso em cima dos ombros. Respirando fundo e achando tão bom esta história de estar sozinha. Uma liberdade boa. Pela primeira vez, ia poder assistir ao que quisesse. Uma palestra, duas, quinze, sem nem um resmungo ou um olhar torto na minha direção. Mostrei o papelzinho para o primeiro jornaleiro que avistei. Os olhos do rapaz analisaram o desenho, passaram para mim e se demoraram, percebi, nas malas que estavam nas costas:
- A senhora vai a pé?
Ia. E ele me explicou que eram, para um jovem (não o meu caso), de passos largos (também não), com muita disposição (idem, idem), mais ou menos uns vinte minutos de caminhada. Achei que os paratienses deviam ser exagerados. No mapa parecia tudo tão pertinho... Quem mora em cidade pequena deve ter outras referências e achar que ali na esquina já é uma distância pra lá de grande. Estou acostumada a andar. Gosto de caminhadas longas. Eram cinco e meia e eu não tinha pressa. Parei para tomar um café, segui para a Tenda dos Autores. Peguei um programa das palestras, sorri para rostos conhecidos, perdi tempo olhando um grupo de ciranda no meio da praça. Delícia. E lá fui eu, já um pouco incomodada com as malas, deixar o peso na pousada, disposta a assistir a palestra das 19h.
E os pés foram andando, andando, andando e o desenho, que no papel parecia tão miudinho, tudo pertinho, foi espichando de uma forma impressionante.
- Ih, ainda falta. A senhora tem certeza de que vai caminhando?
E lá ia eu.
- Tem um trechão sem luz na rua. Mas...
E eu continuava. E a noite chegou. E passei por um trecho meio escuro. Achei que era o tal. Moleza. Pedaço em penumbra, que já se via luz adiante. Há! Fácil! Essa moça não sabe o que é escuro!
E fui, fui, fui. Andando, andando, andando. E vi, mais na frente, outro trechinho sem luz. Um pouco maior. Devia ser aquele, então.
Não era. De repente, veio uma curva e não se via mais nada. Nada mesmo. Olhava para os meus pés e eles estavam perdidos no preto. Ouvia algumas bicicletas passando. Só o barulho. Alguém abriu um celular e apareceu uma luz azulada flutuando no espaço. Breu. Mato e estrada. Um carro passando vez ou outra. Me imaginei nas páginas policiais do dia seguinte. Ou atropelada por um carro desavisado. Fiquei em pânico. Se fosse filme americano, neste momento, um rapaz passaria do meu lado sorrindo, pegaria na minha mão, levaria as malas e, quando chegasse na porta do hotel, eu ia olhar pro lado e ver que não tinha ninguém.
De repente, a solidão, tão boa, tão libertadora, me pareceu perigosa. Pensei em ligar pra você até. Se acontecesse alguma coisa comigo, pelo menos alguém ia saber onde eu tinha sumido. Não liguei. Não apareceu menino-espírito-bonzinho pra me acompanhar, nem um carro para dar carona. Mas eu cheguei. Uma hora depois.
Na piscina, Uzondinma Iweala e o irmão, Okechukwu, opinavam sobre como o artista, para escrever algo de qualidade, precisa deixar o seu mundinho confortável e olhar para o outro. Adélia Prado caminhava mirando florzinhas no chão e Ali Smith conversava com a namorada sobre a programação do dia. Essa parte dos autores eu inventei, é claro! :-)
Mas a pousada era boa. E a promessa das palestras, da movimentação na cidade, dos dias de descanso me animaram novamente. E esse era só o primeiro dia...
Até,
M.

terça-feira, julho 18, 2006

E, de repente... a luz!


Querido F.,

Lembro que, quando visitei meu apartamento pela primeira vez, o teto altíssimo me chamou atenção. Achei lindo. Arejado. Espaço sobrando de monte. Seu Zé ainda ressaltou:
_ São três metros! Apartamento antigo é assim mesmo.
E abriu um sorriso largo, como se o vão livre fosse a maior das qualidades. Não era, mas fiquei encantada com o pé-direito, as janelas de madeira, a luz que entrava de manhã pela sala... Tudo bom. Aluguei.
Até que, num dia de noite, fui acender a luz do banheiro e ela queimou. Olhei a lâmpada lá em cima, sozinha, pequenininha, grudada no teto, que, neste momento, me pareceu ainda mais alto.
Achei que o melhor era pensar no assunto no dia seguinte. E ele passou e mais outro e outro e outro. Meus olhos já estavam acostumados à penumbra, quando, numa sexta de noite, cheguei em casa, toquei o interruptor do corredor e... pif... outra luz sumindo.
Queimada. Sem luz no corredor! Sem luz no banheiro! Desci até a portaria e peguei a escada emprestada. Era hoje! Nem mais um dia. O problema seria resolvido. Subi até o último degrau, braço esticado e... Nada. A lâmpada queimada continuou lá em cima. Inatingível. Impossível de tocar!!!!!
Como viviam os vizinhos? Eram todos gigantes? Andavam com velas pelos cômodos? Já tinha notado que, de noite, a maioria das janelas ficava apagada, mas achava que os moradores tinham saído. Agora sabia da verdade. Nada. Deviam estar dormindo. Sem luz, mal o sol baixava e se enfiavam embaixo das cobertas.
Ontem, não agüentei mais. Pedi ajuda.
_ Seu Zéééééééééééééé!
Ele subiu com uma escada enorme, muito maior do que a primeira. Trocou tudo em dez minutos. É... Acho que, por enquanto, vou continuar podendo dormir tarde...
Até,
M.

domingo, junho 18, 2006

verde-amarelo-azul-e-branco

Querido F.,


Não sei como andam os franceses quando a bola começa a rolar nos campos da Alemanha, mas, por aqui, em dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo, ninguém faz nada. Os estabelecimentos costumam fechar duas horas antes da partida, mas isso não quer dizer que os funcionários tenham ido trabalhar de manhã. Experimente comprar uma caixinha de fósforos num dia de jogo pra ver.
No supermercado, estão todos uniformizados. Não com a roupa da empresa, mas com a blusa da seleção. E é bem capaz de você pagar três vezes o preço, porque a atendente registrou o número errado. Ou sair com três sacolas de compras que nem eram suas. Os corpos estão lá, é verdade, exercendo as tarefas do dia. Mas a cabeça, a alma e sei lá mais o que já estão longe, comendo pipoca na frente de alguma TV, esperando o Ronaldinho cantar o hino nacional num gramado alemão.
Fiz o mesmo. Sem me dar conta estava com a Juma fazendo uma tigela de pipoca ligth, me vestindo de verde e amarelo dos pés a cabeça e gritando BRASIL, empolgada, toda vez que um vizinho assoprava numa corneta de plástico e um som grave, irritante, invadia todo o prédio. TOOOOOOOOOOOOMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM
Pendurei uma bandeira enorme na janela e acompanhei atenta cada passe. Gol! Tooommm! Pulinhos de alegria. Grande Adriano!!! Fred entrou em campo e fez o segundo do Brasil!!!! Fred? Quem era esse mesmo? Não importa. Mais Toooommmm. Mais festa!!! Sorrisos e fogos de artifício espocando no céu, para desespero da Juma.
O jogo acabou. Satisfeita com a vitória tirei minha blusa da seleção e botei um vestido marrom para caminhar na praia. Enrolei a bandeira e arrumei os móveis novamente. Acabou o meu espetáculo de patriotismo. Quinta-feira tem mais.

Lamentei a morte do Bussunda. Disseram que ele era a cara do Brasil. O que será isso?

Até,
M.

segunda-feira, maio 22, 2006

mi casa, su casa

Querido F.,
Foi de madrugada. E a minha televisão de repente ficou preta-e-branca. Laura Cardoso circulava por um apartamento, suspirando de saudades da Espanha natal, sentindo ainda o cheiro da casa distante. Na sua sala, uma TV também sintonizada e o rosto do ex-presidente Collor, anunciando um plano econômico que acabaria com a poupança de muita gente. Lá, junto com o dinheiro perdido, ia o sonho da viagem.
E me lembrei de quando você arrumou as malas para Paris. Tava frio no Rio e cê chegou lá em casa com uma pilha de guias turísticos, pra gente traçar o roteiro dos primeiros dias na França. E a hora da partida chegou e durante uma semana, duas, não me lembro mais quantas, acordei de noite sobressaltada com um cheiro de cigarro forte pelos cantos. Não fumo, não guardo cinzeiros usados e uma faxineira vinha toda semana esfregar paredes e piso. Não adiantava. Era como se, todo dia de noite, você aparecesse novamente na sala, com a pilha de guias, as folhas marcadas com pequenos papéis coloridos. Meses depois, me ligou com voz chorosa. O Louvre era lindo; as aulas na universidade, ótimas; uma namorada nova preenchia as noites. Mas tinha um vazio não sei onde. Uma vontade de casa.
E na tela da TV, no momento mesmo em que recordei desta cena, Fernanda Torres apareceu jovem, com os cabelos voando, caminhando pelas ruas de Lisboa e lamentando o sotaque que saía pela boca dos outros e os acentos desencontrados que os outros escutavam da sua. Estrangeira. Não adiantava falar a mesma língua. Lá estava o sotaque. Com residência, trabalho, amigo e, mesmo assim, estrangeira. A casa ficava onde? Onde estava o seu lugar?
E me senti um pouco como Fernanda. Passeio pelas ruas do Rio e sinto falta da Petrópolis da infância, de uma inocência que eu achava que existia atrás das janelas de madeira. Mas quando volto pra visitar um parente, não me encaixo mais. Fiquei no meio. Sou a própria Rio-Petrópolis. Uma mistura de menina de interior com senhora de cidade grande e, nunca mais. Digo. Nunca uma coisa só. Sempre vazio.
É como uma visita pelos corredores do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. A árvore da língua, o jogo que mostra influências e origens das palavras que falamos hoje. Uma mistura do que diziam os índios, os escravos, os portugueses. Nem mais uma coisa, nem outra. Uma transformação sem retorno. Uma língua que viaja, como as pessoas, e nunca mais é a mesma.
E enquanto Fernanda dirigia desesperada em direção à fronteira, olhando de esguelha pra um navio parado que leva pra longe, junto cenas do passado na cabeça. Penso na palavra casa e não aparecem ruas, residências, paisagens. Vejo encontros com amigos, natais em família, pessoas, pessoas, pessoas. E penso que, se pudesse reunir todos numa cena só, todos os VIPs da minha vida num único encontro, resolveria o meu problema. Só assim.
Até,
M.

segunda-feira, maio 01, 2006

o ataque das formigas gigantes...

Acho que fui envenenada... O caso é que minha casa foi invadida por formigas gigantes. Enormes. Inacreditavelmente grandes. Nunca imaginei que pudessem existir formigas assim. Elas vêm atrás da ração da Juma e saem, uma a uma, carregando os grãos pela cozinha. Juro! Sem exageros. Passam por embaixo da porta e se metem sei lá onde, engordando a pança com a ração da minha cachorrinha. Estão, a cada dia, em maior número. No começo eram só umas poucas, grandes, sempre enormes. E eu achava até bonitinho. Ficava com pena de matar. Devia ser grande o esforço pra carregar a ração pela cabeça.
Mas agora elas vêm aos montes. E já vejo pequenininhas no meio. Acho que procriaram. Eu e a Pedigree estamos ajudando a alimentar uma família inteira de insetos. Por mais que eu saia como uma louca, pisando com meu chinelo pelos cantos, gritando: Morram! Morram! Sem piedade por carregarem migalhas ou grãos inteiros de ração. Não adianta. Elas resistem! Não devem ser daqui.
Fui reclamar com o porteiro. Não era possível. Em algum lugar do prédio elas deviam morar. Qualquer dia desses, acordava e encontrava umas quatro na minha cama, dividindo o travesseiro comigo. E lá veio ele com um saquinho lacrado, cheio de grãos verdes no interior. E explicou direitinho: era pra eu isolar a área, prender a Juma e espalhar o granulado pelo chão da cozinha. As dita-cujas iam levando as pedrinhas, como faziam com a ração, e morreriam todas dentro da própria casa. Cruel. Mas, lembrando da cozinha ocupada por elas, resolvi levar o remédio.
Deixei o saquinho no tanque para ler melhor depois. Lavei a mão de leve, repito, de levinho, sem muitas esfregações e comecei a escovar os dentes para dormir. Fio dental, dedos passeando pela boca, escova, pasta, líquido verdinho para, segundo o comercial, exterminar as placas e sei lá mais o quê. E, quando terminei a operação, me toquei: peguei o saquinho com as tais pedras verdes!!!!!! Tomei um copo de leite (dizem que é bom! Corta o efeito!), peguei uma revista pra distrair a cabeça e comecei a ler: Angélica clicando o Luciano Huck numa cachoeira. Ele só de sunga (até que é bonitinho). Meninas com vestidos esquisitos tentando convencer as leitoras de que dá pra sair na rua daquele jeito. Uma receita pra deixar o cabelo bonito e brilhoso.... e, de repente, nem conseguia mais engolir direito. A boca seca, incrivelmente seca! Fui até a cozinha, despejei um copo inteiro de água. Nada. E, daqui a pouco, não era mais só a boca, mais a garganta inteira. Seca, seca, seca! Entrei na cozinha e fiquei olhando atenta para elas. Pareciam alegres, como nunca, passeando pelos cantos. Tomando conta da casa. Acho que me envenenaram. Vou tentar dormir. Talvez seja impressão. Se não escrever amanhã, telefone pra minha casa.
Até,
M.

segunda-feira, março 27, 2006

Tudo e nada

Querido F.,
... não se avexe não. amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada... A música vinha da vitrola do vizinho, que chegou de férias hoje de manhã com a família. Sim. Eles ainda têm vitrola, com uma pilha de discos de vinil de cobrir uma estante do chão ao teto. E, quando a agulha toca cada um deles, um som cheio de um ruído reconfortante entra aqui dentro de casa. E vai invadindo cada cômodo, até chegar em mim e me encher de uma saudade danada.
E é só fechar os olhos para me ver de manhã, abrindo uma janela de madeira com a pintura descascada. Do outro lado da rua, uma fileira de casas coloridas. No meio, um risco de terra batida para servir de passagem pros carros. E, quando alguém dizia Centro, tava falando das ruas casadas de Petrópolis. História significava andar de pantufas pelos corredores do Museu Imperial ou subir no ziguezague da escada espremida da casa de Santos Dummont.
De tarde tinha bolo de fubá, brigadeiro de colher, queijo-quente com um queijo amarelo escorrendo pelos lados, de fazer qualquer médico de hoje arregalar os olhos. E a diversão era apoiar os cotovelos na janela e fingir que via os passantes, enquanto o pensamento ia longe, num futuro movimentado e cheio de gente. Uma gente que fazia tanta, mas tanta coisa, que o dia pra eles era apertado. O meu, sobrava pelos cantos.
E diziam que em Copacabana dava pra ir andando até o mar. Os turista desfilavam no calçadão. E era esta mesma calçada, exatamente a mesma, que falava inglês de dia e virava cama de noite pruma penca de pessoas sem teto. Rua e casa num mesmo lugar. Prédio com escritórios e consultórios e outros com apartamentos para famílias inteiras, pras pessoas morarem e fazerem tudo a pé, resolvendo qualquer história, das mais cabeludas às mais sem importância, numa caminhada de dez minutinhos. E era lá que eu queria estar. Onde as coisas aconteciam. Onde, numa virada de olho, eu podia ver como andava o mundo.
E era pensamento de menina de treze anos, num fim de tarde de uma rua parada do interior, do interior, do interior de Petrópolis. Mas é claro que as idéias vinham junto com a lembrança do João na sala de aula, do professor de português, dos deveres de casa, da fofoca da Marina, da pipoca quente e do filme da sessão da tarde.
E eu vim. E um dia descobri que o supermercado da esquina tava com uma promoção para o iogurte Danone. Num outro, cheguei podre do trabalho e fui dormir sem jantar. Descobri, num sábado de tarde, que ir ao cinema de Havaianas tava na moda e fumaça de cigarro tinha virado sinônimo da falta de educação (era um charme na minha época!). Numa quarta, me apaixonei por um menino bonito, de sorriso largo. Num domingo, passei uma tarde chuvosa inteirinha lendo em casa. E conheci você F. e ganhei a Juma e fiquei amiga da Irene. Pintei o cabelo de louro e as unhas do pé de vermelho em janeiro. Um dia de manhã, fui na esquina comprar os jornais e vi um homem atropelado. E acordei no meio da noite com o barulho de tiros, mas descobri, pouco depois, que era sonho. E tantas vezes arrumei as malas para conhecer como viviam os outros, nos outros lugares. Numa sucessão de segundos, minutos e horas, que, todos juntos, formaram 52 anos...não se avexe não. amanh

terça-feira, março 21, 2006

Terezinha...

Querido F.,
Tem tempo. É... bastante tempo. Mas sempre me lembro desta história. Hoje, me veio de novo, enquanto a televisão mostrava um filme choroso na sessão da tarde. Foi durante uma festa de casamento em Paraty. As madrinhas saindo da igreja com os sapatos na mão, porque nenhuma tinha levado muito a sério esta história de calçamento em pé-de-moleque e todas tinham teimado que conseguiam se equilibrar em saltos, mesmo com o alto e baixo das pedras. E fomos todos para um restaurante, sem os sapatos mesmo, porque ninguém ligou de calçar os saltos depois, quando os pés já pisavam em tábuas de madeira.
Uma bandinha tocava músicas alegres e pratos saíam da cozinha para as mesas, com uma fumacinha de quentura em cima de cada um deles. Fiquei debruçada pela janela, olhando espantada para aquela cidade que parecia cenário de novela. Uma corrente separava uma teia de ruas de terra batida e casas sem graça, de um trecho com casario antigo e preservado, chão ondulado de pedrinhas e cheiro de mar pelos cantos. Sinhá Moça poderia bem virar uma esquina daquelas, mas quem me encarava era um senhor arrumado, de seus mais de setenta, parado na rua, de frente pra festa.
- O que tá acontecendo aí dentro? Moro aqui na cidade... Fiquei querendo saber o que era...
- É um casamento. Da Rose e do César.
E a resposta não pareceu suficiente, porque o olhar continuou em mim. E achei que ele queria era saber quem era a Rose e como ela e o César tinham se conhecido e alguma coisa assim, mas só depois notei que a comemoração lá dentro não era o motivo, mas o pretexto.
- Você se parece muito com uma ex-namorada minha: a Terezinha... foi o amor da minha vida....Se tivesse a sua idade, ia querer namorar você.
E as mãos enrugadas tocaram as minhas. E ele sorriu. Disse que era bonito o que via e foi embora. Ri de volta, achei engraçado, aliás, engraçadíssimo. Comentei com os presentes. Mas por dentro me perguntava porque afinal de contas ele tinha deixado a Terezinha ir embora. Não era o tal amor da vida dele?
E até hoje encasqueto nesta cena. E me pergunto se é só depois, lá pelo fim da vida, que descobrimos quem foi o tal do amor importante? E fico achando que, se é que ele existe (e logo decido tirar o se da frase, porque deve mesmo existir. Talvez não O, mas UM importante), muita gente deve ter deixado ele passar. Num surto de racionalidade, de emoções pensadas, motivos pesados, deixar a pessoa se perder pela vida, contando que talvez o futuro pudesse juntar novamente. E fico pensando que talvez o tal do amor não tenha nada a ver com uma história comprida, mas com um sentimento forte, que a gente fingiu que não viu e seguiu adiante, achando que era o certo a fazer no momento. E que isso não tem nada a ver com pessoas casadas e romantismo em excesso também, mas com histórias que precisavam ser vividas e foram deixadas pra trás.
E, hoje, tantos e tantos anos depois, no meio das lágrimas por causa de um filme bobo e sem graça, lá estava eu neste caso novamente. Terezinha. Olhei pra trás e fiquei tentando achar o meu no meio de tantas histórias vividas. Não consegui. Ou fingi que não vi mais uma vez. Talvez ainda precise de mais alguns anos. Talvez, talvez, talvez...

Até,
M.

sábado, março 11, 2006

Alguma coisa acontece...

Querido F.,
Meu vizinho assina o Estado de São Paulo. A família deve estar viajando, porque a pilha aumenta cada vez mais ao longo da semana. Tenho pena. Desperdício aquele monte de informação amontoada, pronta para ser jogada fora. Não acredito que alguém chegue disposto a ler aquela montoeira toda depois de uma semana de férias onde quer que seja. Então, resolvi pegar um exemplar ou outro para dar uma espiada. Coisa rápida. Depois eu coloco tudo de volta naquela torre de papel. Foi assim que me deparei com um encarte inteiro dedicado à Bienal do Livro de São Paulo.
Não gosto muito de bienais. Elas servem pra você fazer compras, voltar cheia de sacolas com livros em desconto. As palestras são tão disputadas que é preciso passar horas na fila para avistar, de um canto espremido, uma personalidade das letras falando de um assunto qualquer. Cortei as tais da minha vida. A Flip é a única festa literária que não falto. Vou feliz para Paraty todos os anos. Mas acontece que, desta vez, movida pela desculpa do encarte, fiquei tentada. Arrumei uma mala pequena, dois dias só, deixei Juma aos cuidados do porteiro, e lá fui eu.
Minhas sandálias percorreram grande parte dos vinte mil metros quadrados descritos no jornal. Não me pareceram tanto assim. Estandes e mais estandes com livros empilhados. Comprei vários. Impossível resistir a um exemplar de “Grande Sertão: Veredas” com 40% de desconto. O título está completando 50 anos e nunca esteve na minha prateleira até então. Tava na hora.
Saí feliz do Anhembi. Mas o contentamento acabou na mesma hora em que entrei no táxi. Cidade espalhada é São Paulo. Me sinto pequena, perdida naquele monte de ruas e prédios sem sentido, intermináveis. Os restaurantes podem ser maravilhosos, a comida deliciosa, as lojas com roupas irresistíveis, mas tudo o que sinto quando cruzo suas ruas é vontade de ir pra casa. Tenho a impressão de que a cidade é dividida por blocos e que cada um dos moradores só freqüenta um número limitadíssimo de quadras e ninguém se importa com o pedaço dos outros. São Paulo me deixa com um vazio por dentro.
Marquei a passagem para a manhã seguinte. Estava de bom tamanho e, quando o despertador tocou, levantei aos pulos. Feliz. Congonhas me pareceu acolhedor e, cada vez que Rio de Janeiro piscava nas telas de chamada, uma coisa vibrava aqui dentro. Casa. E lá fui arrastando minhas malinhas pelo saguão, uma só com livros. Na entrada para o embarque, dois taxistas descansavam do lanche observando os passantes.
_ Essa é carioca.
_ Do Rio?
_ Com certeza.
Falavam de mim e, no primeiro momento, achei que estava mal-vestida. Mas foi só olhar para os lados com mais atenção para notar que todos desfilavam casacos, calças compridas e sapatos fechados. Só eu com vestido de alça e sandália rasteira. Não adianta. Para mim, São Paulo vai ser sempre só um endereço para um compromisso marcado na agenda.
Até,
M.

sábado, março 04, 2006

Bonecas russas

Querido F.,
Alberto me convidou para assistir a uma maratona Odeon. Não estamos mais juntos, mas, quando o amor acaba e a pessoa continua querida, conseguimos ser amigos. Claro que não agüentei os três filmes seguidos, não subi para ver o DJ tocando no segundo andar e apenas gostei de saber que, às 5h, eles servem café e bolo para os sobreviventes da noite. Com certeza, não seria uma delas. Sou uma senhora e, apesar de não dormir cedo, gosto de passar as madrugadas na minha casa. Assistimos somente à primeira sessão, “Bonecas russas”, continuação de “Albergue espanhol”, com mesmo diretor e elenco. A história fala novamente de relacionamentos. Estamos sempre a procura daquela bonequinha russa, a do miolo, a principal. Depois dela, mais nada. Acabou a busca. Encontramos o amor. Mas, surpresos, descobrimos que há sempre mais uma, numa sucessão de relacionamentos que não parece acabar nunca. Cansativo. Difícil. E lá vem Xavier aparecendo na tela, com trinta anos agora, morando de favor na casa de amigos, trabalhando em bicos a espera de uma editora que publique o seu livro, colecionando uma série de namoros que terminaram em desastre. E as nacionalidades se misturam, as fronteiras são cruzadas com facilidade. Ele acorda em Paris, dorme em Londres, viaja para a Rússia. Os amigos vêm da Itália, Espanha, Inglaterra, França... As culturas são diferentes, os idiomas idem, mas eles se entendem, conseguem se comunicar apesar de toda a dificuldade, das muitas imperfeições e ruídos. Vão seguindo. E o irmão de Wendy supera a maior das adversidades. Trabalhando como iluminador, conhece uma bailarina de uma companhia russa de balé clássico. Ela não fala nem uma palavra de inglês, ele não entende nada de seu idioma enrolado. São só sorrisos, acenos, mímicas. O grupo vai embora, o rapaz se matricula num curso para aprender a língua. Um ano passa, até que ele a procura de novo. Acha, claro. E, sim, há um casamento. Mas será que ela é a última bonequinha russa? O tal amor verdadeiro? Aquele do para todo o sempre, até que a morte os separe e coisa e tal? O filme acaba antes de a gente descobrir se, depois da bailarina, o menino se apaixona por uma dançarina de cabaré ou uma trocadora de ônibus. Olhei para o Alberto sentado ao meu lado. Qual será o próximo?
Até,
M.

quarta-feira, março 01, 2006

Cadê a minha Marie Claire?

Querido F.,
Durante todo o carnaval, recebi a assinatura da Marie Claire na porta de casa. Um rapaz louro, com cabelo de cachinhos vinha me entregar a revista todos os dias. Uma promoção para que pudéssemos conhecer a publicação e, a cada manhã, chegava uma diferente. Desta forma, li novembro, dezembro, janeiro e fevereiro em quatro dias. Hoje, quarta-feira de cinzas, preparei meu café e fiquei esperando a campainha tocar. Nada. O relógio passou das dez para as onze, pulou para o meio-dia e já vem marcando duas e meia. Nada. É claro que eu estava gostando de me espalhar no sofá e explorar outros cantos do mundo, outras histórias e fotos e mais fotos e fotos em cada página. Mas o que eu queria mesmo era ver o sorriso do rapaz pelo olho mágico, a mão estendida decorada com um anel de prata. Me apego. Sinto falta. Devia morar no interior, porque não me acostumo com o ir e vir constante da cidade grande. Fico presa aos pequenos detalhes e sofro com a falta que me fazem nos dias que seguem. Me pego imaginando por onde andam os dedos com o anel de prata pendurado, para que cantos e rostos o sorriso aparece. Sabia que era uma promoção por tempo limitado e nem por isso pensei em fechar a porta e ficar no quarto ouvindo a campainha tocar e fingir que não tinha ninguém em casa só por causa do prazo de validade tão curto. Mas uma parte de mim se espanta. Quer reter os momentos no tempo e fica imaginando o que pensava, por onde anda, que outras palavras saem daquela boca além de bom dia. A outra grita que a vida é assim mesmo. Que já estou há 52 anos por aqui e é preciso se acostumar com esta história. Juma me chama para passear. Pula de um canto para o outro com a coleira na boca. Lá fora está um sol bonito e o mormaço entra pela janela pedindo uma roupa fresca e um chapéu protegendo o rosto. Vou descer agora.
Até,
M.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Torta alemã

Querido F.,
Foi Felipe quem me apresentou à única torta alemã que faz parte do meu cardápio. O relacionamento acabou, anos se passaram e o hábito de ir na Tratoria, em Copacabana, só pensando nela, ficou. Hoje eu fui lá de novo. Sentei sozinha numa mesa, sem o menor pudor de estar desacompanhada num restaurante, depois de uma certa idade não ligamos mais pra estas coisas. Pedi um prato executivo sem muita importância, que depois da última garfada já tinha se apagado da minha memória, e acenei para o garçom atrás da sobremesa. Lá veio ela, com aquela fumacinha de gelo subindo. Vem quase como um sorvete, envolta em biscoito Maria. O creme branco não tem gosto nenhum de manteiga (garanto!) e o sabor é delicado, impossível de descrever. Em cima, uma calda de chocolate generosa, parecida com um brigadeiro puxa-puxa. Delícia! Fui comendo com calma, como criança, aproveitando cada pedacinho na colher com prazer. Raspei o prato. Pediria outra, se a balança não estivesse gritando que aquele pedaço já tinha sido uma extravagância. Saí feliz! E, como todas as vezes em que visito o restaurante, fiquei pensando que, se existe alguma boa razão para o Felipe ter passado pela minha vida, ela estava bem ali, naquela fatia de torta.
Até,
M.