Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

domingo, outubro 31, 2004

Querido F.,

Desculpe estar novamente escrevendo sem acentos.... Estou semanas sem saber muito bem como te contar o que aconteceu. Foi no domingo de tarde, antes da hora do almoço. A Lucy acordou indisposta e cismou de passar o dia inteiro se recuperando de uma ressaca. Eu e o Juarez aproveitamos a carona de um casal hospedado na nossa pousada e fomos passear de lancha novamente.
Deve ter sido o vento. Ventava muito e tive que segurar o chapeu com as duas maos para que nao voasse. O ar, com toda a sua violencia, foi entrando dentro de mim e varrendo raiva, implicancia, mau humor e tirando as coisas todas do lugar. E, assim, entre uma travessia de lancha e um mergulho no mar, cai de amores.
Nao sei se foi o sorriso, mas achei ele especialmente bonito naquela tarde. E sumiu o Juarez beberrao, o espaçoso, o exagerado, aquele que cisma em afirmar, com a maior de todas as certezas, que o melhor botequim do mundo e aquele onde esta sorvendo sua tulipa de chope e mudar de ideia tres, quatro, cinco vezes numa mesma noite. Ficou um homem de sorriso bonito, que me estende a mao para saltar do barco e me chama de querida.
Em Paraty caminhamos por toda a cidade e Juarez, empolgado, constatou que por la nao ha um botequim sequer. E nos dois juntos andamos por mais horas e horas, procurando pela esquina onde ele pretende instalar o projeto de sua aposentadoria.
De noite, Juarez tentou me beijar, mas eu recuei... Amanha vamos nos encontrar para um cafe no fim do dia. Com ele, imagino que seja um cafe com cognac.

Ate
M.

sábado, outubro 23, 2004

Querido F.,

Não fomos para Ilha Grande. O Juarez sugeriu que a gente fosse para Paraty e, na quinta de noite, rumamos para cá. Para falar a verdade, não gostei muito da mudança, mas isso nada tem a ver com a cidade. Adoro o charme de Paraty e ainda guardo na memória os bons momentos que passei por lá na última Flip.
Confesso que o que me irritou foi este intrometimento do Juarez. Um convidado de última hora para lá de espaçoso. Se intrometeu no nosso programa e foi mudando tudo sem a menor cerimônia. Veio com a história de que está trabalhando em sua aposentaria e vem pesquisando um lugarzinho calmo e simpático para abrir um botequim e passar os fins dos dias arrastando os chinelos. Sinceramente, não consigo imaginar um futuro mais apropriado. Tá certo. Tá certo. Vou parar de implicâncias.
A verdade é que estamos nos divertindo muito. Na quinta, ainda tivemos tempo de jantar num restaurante Tailandês de Paraty. Lucy não tem do que reclamar. A cidade parece na medida para ela. Os paulistas e os estrangeiros invadiram tudo por aqui, montando estabelecimentos simpáticos, com um toque de sofisticação e boa comida. O tailandês, por exemplo, é moderníssimo, com decoração ultra colorida, flores caindo do teto e mesas pintadas com motivos tropicais. Poderia estar funcionando numa esquina de Ipanema, numa rua da Vila Madalena, mas tem a vantagem de estar instalado em Paraty. Temos beleza natural, conforto, boa comida, gente bonita (ai, como odeio esta expressão. Mas a Lucy está falando isso o tempo todo e escapou) e muito vinho. Tudo o que a Lucy queria ver reunido.
Em falar em vinho, o Juarez não economizou e, na primeira noite, tomou tantas cervejas que nem sei como conseguiu levantar da cadeira no final. Ontem ficamos rodando pela cidade, aproveitando as horas vagarosas para conversar e bebericar. Hoje alugamos uma lancha e conhecemos praias lindas. Ficamos nadando e nadando e não consigo pensar num dia mais agradável do que esse. Trouxe minha cachorrinha e ela anda muito enturmada com tudo. Parece que sempre viveu por aqui. Agora estamos saindo para aquele tradicional teatro de bonecos. Há uns dez anos esta companhia encena a mesma peça, mas é tão bonito, tão simples, singelo e tocante ao mesm tempo, que sempre assisto de novo.

Até,
M.

quarta-feira, outubro 20, 2004

Querido F.,
Hoje tenho duas coisas para falar. Primeiro, fiquei muito irritada porque a Lucy resolveu convidar o Juarez para nos acompanhar em nossa viagem a ILha Grande. Da para acreditar? Lembra dele? Beberrao. Vive com o nariz vermelho de tanta cachaça, cantando todas as mulheres que passam, com aquele ar de gala decadente. Fiquei revoltada. Tenho certeza de que, mesmo la, no meio do mato e da natureza, Juarez vai encontrar um pe-sujo para passar as noites. E vai varar a madrugada com a barriga encostada no balcao, conhecendo a historia do bar e do dono do estabelecimento inteirinhas. Depois, vai querer nos convencer de que encontrou uma reliquia em plena Angra dos Reis.... Saco!
E nao posso deixar de registrar aqui minha profunda tristeza com a morte de Fernando Sabino. Me senti muito sozinha quando escutei no jornal que ele tinha partido. Grande amigo. Que me ensinou em livros como, "O encontro marcado", que se sentir um marciano em plena Terra nao era privilegio ou dor apenas minha. Que a angustia e aquele vazio dentro do peito, de quem nao descobre o seu lugar, estao presentes em outros coraçoes tambem.
Hilda Hilst, Fernando Sabino..... Era tao bom saber que eles continuavam por aqui, caminhando, produzindo...Mesmo que eu nunca tivesse trocado uma palavra com nenhum dos dois. Era muito bom saber que estavam por perto. Saudades....

Ate,
M.

sexta-feira, outubro 15, 2004

Querido F.,

Lucy nao quer acampar. Disse que este tempo ja passou e que hoje ela gosta mesmo e de uma pousadinha confortavel, com ar-condicionado, lençois limpos e banho quente. Talvez tenha razao.... Disse que seu tempo de menina hippie ficou no passado e, hoje, aprendeu com a maturidade que nao precisa passar nenhum sufoco para estar em contato direto com a natureza. Quer tirar o melhor de tudo...
Talvez ficasse meio ridiculo mesmo... Duas senhoras com seus pequenos cachorros penteados querendo voltar no tempo numa barraca de camping. O tempo nao volta. Passou.
Mas vmos comemorar o hoje, entao. A amizade e a natureza!

Ate,
M.

terça-feira, outubro 12, 2004

Querido F.,

A Lucy veio aqui em casa na ultima semana. Ha tempos nao nos viamos e ficamos horas botando o papo em dia. Fiz um jantar caprichado, daqueles que costumava fazer para voce, lembra? Cuscuz marroquino e frango com curry. Receita da vovo. Ficou excelente. Tomamos vinhos, acendi umas velinhas com suporte de ceramica em cima para filtrar a luz e abri a porta da varanda para a casa ficar com cheirinho de mato. Pode acreditar. Com a quantidade de plantas que tenho na varanda, consigo cheirinho de mato em plena Nossa Senhora de Copacabana.
Lucy vai voltar a morar no Brasil. Falei para ela que talvez um dia voce venha tambem, nao e mesmo? Se casou pela quinta vez e agora anda escrevendo umas colunas sobre sexo para o jornal Folha de Sao Paulo. Supimpa! Achei interessante. MInha amiga fica ate o fim deste mes e combinamos de passar um fim de semana em Ilha Grande acampando. E, isso mesmo. Vamos acampar para lembrar os velhos e bons tempos. Saudades suas....
Ate,
Madame M.

domingo, outubro 03, 2004

Querido F.,

Meu computador quebrou... Isso explica tanto tempo sem escrever. Não sei o que fazer para conserta-lo. Fico pensando porque não optei por me casar na minha vida. Isto resolveria muitos dos meus problemas... Ia ter pelo menos alguem para me ajudar a manter as coisas funcionando.
Na semana passada fui a São Paulo. A intenção era ir à Bienal, mas eu me informei mal. A exposição só começaria no fim de semana. E, como agora estou sofrendo uma coisa muito estranha: uma vontade louca de sair de casa e, depois de uns dias, uma outra ainda maior de voltar logo (nunca estamos satisfeitos, não é mesmo?), não vi nada de artes plásticas na minhas estada por lá. Aproveitei, então, para assistir à apresentação do Ballet do Teatro Scala de Milão. Balé clássico me faz lembrar a infância. As aulas de balé na Dalal Achcar, no Rio. Foi tudo muito lindo por lá. O grupo dançou uma versao de "Sonho de uma noite de verao", a obra de Shakespeare coreografada pelo mestre Balanchine, que revolucionou a dança classica no seculo XX. Amei! Agora, preciso marcar outra viagem. Acho que volto para ver as artes...

Até,
M.