Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

segunda-feira, janeiro 17, 2005

Querido F.,

Eu tenho esta mania de me olhar de fora. Não consigo aproveitar os momentos, porque estou sempre observando cada coisa que faço pelo lado de fora, como se estivesse olhando um filme em que estou atuando. E meu olhar é sempre crítico, procura pelos defeitos. Por mais que eu tente me esquecer nos braços do Alberto, por exemplo, me pego sempre com um olho aberto e outro fechado. E tudo fica parecendo inapropriado. Me vejo velha para beijos, abraços, sexo. Mas me sinto jovem durante os beijos, abraços e sexo. Tento desligar o olho vigilante, mas ele resiste, cada vez mais crítico, implacável. Tenho vontade de transar com as luzes apagadas, embaixo das cobertas. Me escondendo de mim mesma. Mas resisto, não me entrego. Na minha luta, tento ignorar as rugas, as gordurinhas que os anos e os doces consumidos em todos estes anos acumularam em volta da minha cintura, e acendo a luz principal e finjo que não vejo meu reflexo passeando pelo espelho que tenho em frente à cama. Na primeira vez que o alberto pisou na minha casa, veio afoito, passando as mãos pelo meu corpo. Me senti viva, cheia de desejo. E me senti sem graça, me vendo de fora sentada no sofá, velha para tudo aquilo. Talvez você ache que este papo todo deveria ficar guardado para meus encontros com minha analista. Mas eu fico achando que não sou só eu que tenho uma espiã dentro de mim. Enfim, quis dividir com você a experiência.
Mil beijos, querido.
Até,
M.