Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

quarta-feira, outubro 26, 2005

Querido F.,

Uma dor de garganta me pegou. Daquelas brabas, que deixam tudo vermelho e dão uma moleza no corpo que você só consegue andar se arrastando. Alberto fez um chá para mim. Juma traz cada vez um brinquedo novo para me distrair. Mas, mesmo com tanto mimo, não consigo ficar em casa. Me arrasto pelas ruas de Copacabana procurando distração. Os lugares que não saem da minha memória. Não que façam parte de forma tão forte assim do meu passado. Eu nem morava em Copa durante a infância, a adolescência e nem no início da vida adulta. Sou de Petrópolis, você bem sabe. Mas me dá uma nostalgia danada passear por estas ruas. Nostalgia dos textos da Clarice, em prédios áridos do Leme. Das histórias do Dapieve no Posto 6. Dos contos do Sérgio Santanna . Da visão profética de Rubem Braga, quando disse que Copa estava na UTI. Que seria invadida por monstros de concreto e que, por lá, a mais estranha das raças humanas ia se proliferar.
Copa das prostitutas chorosas e das beatas madrugadoras. Das velhinhas e velhinhos andando pelas ruas com seus poodles, atropelando pedestres com seus carrinhos a motor. Do glamour do Copacabana Palace e da degradação da Princesa Isabel.
Ando por aqui e me sinto viva. Me sinto menos sozinha, menos isolada, no turbilhão da multidão que não pára de passar. No meio de tudo o que é feio, sujo ou bonito.
Preciso comprar um carrinho a motor.
Saudades...
Até,
M.

terça-feira, outubro 18, 2005

Querido F.,

Para mim, a culpa sempre foi de Shakespeare. Romeu e Julieta se conheceram, se apaixonaram, morreram por amor. E foi isso. Um amor único e verdadeiro, porque nem deu tempo da vida mostrar o contrário. E eu li a história ainda na adolescência (quantos anos já não se passaram desde então...) e acreditei que era isso mesmo. Que todo mundo tinha um só e especial amor na vida. Fiquei esperando Romeu escalar a trepadeira e subir na minha janela para um beijo de boa noite. E acho que a culpa só pode ser destes altos edifícios cariocas. Morasse eu em Verona e meu Romeu já estaria esquentando os pés no meu edredon há tempos.
Mas hoje acordei assim, F. Pensando nesta história de amor romântico. Cheguei na sala e Alberto colocava um disco de jazz no som, baixinho, com medo de me acordar. E fiquei lembrando de quantos Romeus já passaram na minha vida. O namoro começava,eu apostava que era aquele e os dias iam, o sentimento crescia, diminuía, morria. E a vida continuava e mais dias passavam, meses talvez, e outro chegava pela porta.
Agora Alberto está aqui. Sem cavalo branco ou escaladas noturnas. E meu coração se sente reconfortado. E dá uma paz enorme saber que ele faz parte da minha rotina. Se só agora encontrei o amor da minha vida? Hoje Romeu e Julieta é só mais uns dos livros que tenho na estante. Ainda acho bom, é verdade. Mas tenho a certeza de que a única solução possível para que o amor da dupla permanecesse eternamente lindo, foi a morte. Sábio Shakespeare. E, só agora, na casa dos cinquenta, descobri isso.
Até,
M.

sexta-feira, outubro 07, 2005

Querido F.,

Outro dia, quando escrevia uma carta pra você, me lembrei de quando aluguel meu primeiro apartamento e resolvi que ia morar sozinha. Me incomodava aquele ambiente estático. Tenho uma família grande, muitos irmãos, você sabe. E estava acostumada a deixar um pente numa mesa e, minutos depois, descobrir que ele tinha parado na bolsa de alguém. De deixar uma blusa na cadeira do quarto e, depois do trabalho, ver que tinham lavado a peça.
Na minha casa nova, tudo ficava onde eu deixava. No início, foi um alívio. Liberdade, privacidade, domínio sobre a minha vida. Depois, meus rastros intactos pela casa só reforçavam a minha solidão.
Morava num apartamento de dois quartos no Grajaú, de frente pra mata, e, descobri, num dia de tarde, que a árvore em frente à janela da sala era visitada constantemente por uma família de micos. Passei a deixar, de propósito, uma banana descascada todos os dias dentro da fruteira. E quando chegava em casa, via que alguém tinha estado lá dentro. Uma banana meio devorada em cima da mesa, um saco plástico no chão, grãos de terra por alguns cantos da casa. Eram educados aqueles micos. Comiam o que tinha sido deixado para eles e iam embora sem muita bagunça. Era uma presença sutil, mas foi um alívio ver que havia vida dentro do meu espaço.
Os anos se passaram, eu mudei de apartamento, de bairro, de vida. Eu e Juma passamos a formar uma dupla perfeita. Hoje... não sei se consigo abrir espaço pra mais alguém.
Até,
M.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Querido F.,

Eu sempre quis, é verdade. Você é testemunha disso e eu não ouso negar o que tantas vezes defendi em mesas de bar. Sempre quis um homem ao meu lado. Um homem para dividir a cama todas as noites, para regar as plantas, para me dar beijos e abraços no corredor, para me repreender nas vezes em que estiver errada. Queria encontrar roupas no quarto que não fossem as minhas. Esquecer um copo na sala e não dar de cara com ele, intacto, no mesmo lugar, uma semana depois.
Era para a alegria e a triste, para os sábados de sol e as manhâs de segunda mesmo. E hoje eu tenho. Chegou num adiantado da vida, é verdade também. Mas Alberto está aqui. Abro o meu armário e encontro suas roupas penduradas do lado das minhas. Trouxe os discos de jazz, os livros do Graciliano e pés quentes para me aquecer nas noites de frio.
E.... eu não sei se aguento. Não sei se consigo dividir. Porque esta história de dois virando um só... Eu tenho medo. Tenho medo de ser menos eu na presença do outro. De me perder na mistura dos corpos. Fico dizendo que minha alma é imensa, que precisa de espaço, que gosta de tomar conta da casa. Mas acho que, na verdade, tenho medo é que ela perca os seus contornos.
Tenho pânico de manchar esta personalidade que eu levei tanto tempo para criar. Há anos, grito no meu próprio ouvido que sou assim. Afirmei com convicção para mim mesma que existia. E agora, com o Alberto, pode não haver espaço para tantas leituras, tantas palavras soltas, tantas viagens, tantos prazer que me fazem diariamente lembrar quem eu sou. Tenho medo de não ser mais eu.
Até,
M.