Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno

quarta-feira, dezembro 28, 2005

Réveillon

Querido F.,
Vou vestida de branco. E não adianta os especialistas afirmarem que o mar durante o réveillon fica carregado de energias negativas. Não acredito não. Tem um mundão de sal lá dentro prontinho pra descarregar o que está pesado demais. E eu quero as águas do mar molhando os meus tornozelos quando os relógios marcarem meia-noite. Dispenso as uvas, os pulinhos, o pé direito, a calcinha rosa e as lentilhas na mesa de jantar. Mas quero chegar em 2006 limpa, sem rancores, raivas e neuras. O branco, o mar e tudo o mais vão representar exatemente isso, pra ver se a parte de dentro aprende e cópia o que a de fora faz.
E o mergulho virá acompanhado de uma prece.
Feliz Ano Novo!
Até,
M.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Querido F.,

Na semana passada, assisti ao filme "Cinema aspirinas e urubus". É a história de um alemão que vai para o interior do Brasil vender aspirinas, um novo e milagroso medicamento, fugir de uma guerra que tomou conta do seu país e que ele quer esquecer que existe. E de um nordestino, Ranulpho (adorei este nome! Juma corre o risco de ganhar um irmãozinho chamado Ranulph no futuro!), que quer fugir da seca e sonha com um futuro melhor no Rio.
E me lembrei das tantas e tantas vezes em que eu arrumei as malas e saí rodando por aí. Fugindo de mim mesma, dos fracassos da vida, das cobranças, dos planos e sonhos que tinha medo de encarar. E em cada lugar que passava, em cada pessoa que conhecia, vislumbrava um futuro possível, uma história diferente que eu podia, se quisesse, escrever para mim.
E quando começava a chover num lugar, arrumava as malas e ia pra outro. E quando chegava um grupo interessante num dia, cancelava a ida e ficava mais um pouquinho. E, às vezes, acontecia de acordar e, por alguns segundos, não me lembrar da cidade onde estava. Mas a confusão era coisa rápida.
Sempre fui alguém de passagem. Porque, se ficasse, a vida simples e fácil, ganharia problemas. O bom era ver, conhecer, ir embora. Como quem vê a paisagem da janela de um ônibus. Saudades deste tempo...
Hoje a Juma, de pirraça, roeu toda a minha cortina do banheiro. Se estivesse viajando, seria a cortina de um hotel de beira de estrada. Eu virava às costas, ia embora, e deixava o rombo para o próximo hóspede.
Até,
M.

segunda-feira, novembro 07, 2005

Querido F.,

Caíram gotas grossas de chuva hoje pela manhã. A água escorrendo sem parar pela minha janela. A imagem ficou toda embaçada. Borrões verdes, cinzas, coloridos lá embaixo. Me senti míope.
Mas a verdade é que ando meio míope mesmo. Tenho medo de assumir este defeito de visão e, então, digo com absoluta certeza, convicção nas palavras, que enxergo muito bem, que o olho bom arrasta o ruim pelas costas, corrigindo pequenos deslizes de captação. Mas a verdade é que ando por aí como quem tem lágrimas nos olhos.
E, você nem vai acreditar, mas as tais gotas escorriam às 6h30m da manhã pela vidraça. E eu que antes só me deitava quase neste horário... Agora, costumo acordar cedo, olhar para o céu bem de manhã. O sono ficou leve, leve, de repente, e eu ando achando que esta coisa de dormir é perda de tempo e tenho vontade de sair logo da cama e ganhar a rua. Tenho urgência em tudo.
Saudades!
Até,
M.

quarta-feira, outubro 26, 2005

Querido F.,

Uma dor de garganta me pegou. Daquelas brabas, que deixam tudo vermelho e dão uma moleza no corpo que você só consegue andar se arrastando. Alberto fez um chá para mim. Juma traz cada vez um brinquedo novo para me distrair. Mas, mesmo com tanto mimo, não consigo ficar em casa. Me arrasto pelas ruas de Copacabana procurando distração. Os lugares que não saem da minha memória. Não que façam parte de forma tão forte assim do meu passado. Eu nem morava em Copa durante a infância, a adolescência e nem no início da vida adulta. Sou de Petrópolis, você bem sabe. Mas me dá uma nostalgia danada passear por estas ruas. Nostalgia dos textos da Clarice, em prédios áridos do Leme. Das histórias do Dapieve no Posto 6. Dos contos do Sérgio Santanna . Da visão profética de Rubem Braga, quando disse que Copa estava na UTI. Que seria invadida por monstros de concreto e que, por lá, a mais estranha das raças humanas ia se proliferar.
Copa das prostitutas chorosas e das beatas madrugadoras. Das velhinhas e velhinhos andando pelas ruas com seus poodles, atropelando pedestres com seus carrinhos a motor. Do glamour do Copacabana Palace e da degradação da Princesa Isabel.
Ando por aqui e me sinto viva. Me sinto menos sozinha, menos isolada, no turbilhão da multidão que não pára de passar. No meio de tudo o que é feio, sujo ou bonito.
Preciso comprar um carrinho a motor.
Saudades...
Até,
M.

terça-feira, outubro 18, 2005

Querido F.,

Para mim, a culpa sempre foi de Shakespeare. Romeu e Julieta se conheceram, se apaixonaram, morreram por amor. E foi isso. Um amor único e verdadeiro, porque nem deu tempo da vida mostrar o contrário. E eu li a história ainda na adolescência (quantos anos já não se passaram desde então...) e acreditei que era isso mesmo. Que todo mundo tinha um só e especial amor na vida. Fiquei esperando Romeu escalar a trepadeira e subir na minha janela para um beijo de boa noite. E acho que a culpa só pode ser destes altos edifícios cariocas. Morasse eu em Verona e meu Romeu já estaria esquentando os pés no meu edredon há tempos.
Mas hoje acordei assim, F. Pensando nesta história de amor romântico. Cheguei na sala e Alberto colocava um disco de jazz no som, baixinho, com medo de me acordar. E fiquei lembrando de quantos Romeus já passaram na minha vida. O namoro começava,eu apostava que era aquele e os dias iam, o sentimento crescia, diminuía, morria. E a vida continuava e mais dias passavam, meses talvez, e outro chegava pela porta.
Agora Alberto está aqui. Sem cavalo branco ou escaladas noturnas. E meu coração se sente reconfortado. E dá uma paz enorme saber que ele faz parte da minha rotina. Se só agora encontrei o amor da minha vida? Hoje Romeu e Julieta é só mais uns dos livros que tenho na estante. Ainda acho bom, é verdade. Mas tenho a certeza de que a única solução possível para que o amor da dupla permanecesse eternamente lindo, foi a morte. Sábio Shakespeare. E, só agora, na casa dos cinquenta, descobri isso.
Até,
M.

sexta-feira, outubro 07, 2005

Querido F.,

Outro dia, quando escrevia uma carta pra você, me lembrei de quando aluguel meu primeiro apartamento e resolvi que ia morar sozinha. Me incomodava aquele ambiente estático. Tenho uma família grande, muitos irmãos, você sabe. E estava acostumada a deixar um pente numa mesa e, minutos depois, descobrir que ele tinha parado na bolsa de alguém. De deixar uma blusa na cadeira do quarto e, depois do trabalho, ver que tinham lavado a peça.
Na minha casa nova, tudo ficava onde eu deixava. No início, foi um alívio. Liberdade, privacidade, domínio sobre a minha vida. Depois, meus rastros intactos pela casa só reforçavam a minha solidão.
Morava num apartamento de dois quartos no Grajaú, de frente pra mata, e, descobri, num dia de tarde, que a árvore em frente à janela da sala era visitada constantemente por uma família de micos. Passei a deixar, de propósito, uma banana descascada todos os dias dentro da fruteira. E quando chegava em casa, via que alguém tinha estado lá dentro. Uma banana meio devorada em cima da mesa, um saco plástico no chão, grãos de terra por alguns cantos da casa. Eram educados aqueles micos. Comiam o que tinha sido deixado para eles e iam embora sem muita bagunça. Era uma presença sutil, mas foi um alívio ver que havia vida dentro do meu espaço.
Os anos se passaram, eu mudei de apartamento, de bairro, de vida. Eu e Juma passamos a formar uma dupla perfeita. Hoje... não sei se consigo abrir espaço pra mais alguém.
Até,
M.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Querido F.,

Eu sempre quis, é verdade. Você é testemunha disso e eu não ouso negar o que tantas vezes defendi em mesas de bar. Sempre quis um homem ao meu lado. Um homem para dividir a cama todas as noites, para regar as plantas, para me dar beijos e abraços no corredor, para me repreender nas vezes em que estiver errada. Queria encontrar roupas no quarto que não fossem as minhas. Esquecer um copo na sala e não dar de cara com ele, intacto, no mesmo lugar, uma semana depois.
Era para a alegria e a triste, para os sábados de sol e as manhâs de segunda mesmo. E hoje eu tenho. Chegou num adiantado da vida, é verdade também. Mas Alberto está aqui. Abro o meu armário e encontro suas roupas penduradas do lado das minhas. Trouxe os discos de jazz, os livros do Graciliano e pés quentes para me aquecer nas noites de frio.
E.... eu não sei se aguento. Não sei se consigo dividir. Porque esta história de dois virando um só... Eu tenho medo. Tenho medo de ser menos eu na presença do outro. De me perder na mistura dos corpos. Fico dizendo que minha alma é imensa, que precisa de espaço, que gosta de tomar conta da casa. Mas acho que, na verdade, tenho medo é que ela perca os seus contornos.
Tenho pânico de manchar esta personalidade que eu levei tanto tempo para criar. Há anos, grito no meu próprio ouvido que sou assim. Afirmei com convicção para mim mesma que existia. E agora, com o Alberto, pode não haver espaço para tantas leituras, tantas palavras soltas, tantas viagens, tantos prazer que me fazem diariamente lembrar quem eu sou. Tenho medo de não ser mais eu.
Até,
M.

terça-feira, setembro 20, 2005

Querido F.,

Fui surpreendida com um livro na manhã de hoje. Chegou para mim de presente, inesperado, delicioso. E foi a Juma quem encontrou. Fui botar o lixo na lixeira do corredor e lá ficou ela fuçando num monte de jornais jogados no chão. E, de repente, me sai com uma capa durinha, quadradinha de lá de dentro. O rabo abanando, olhando pra mim com cara de sorriso.
Sorri também. Balzac e a costureirinha chinesa. Se passa no fim da década de 60, quando o líder Mao Tse-Tung resolve decretar que tudo quanto é livro escrito no ocidente é proibido e os jovens das cidades grandes precisam passar por um período de reeducação. Eles vão para aldeias isoladas trabalhar e aprender que tudo o que vem da cultura ocidental é coisa de burguês. Inútil para a vida. Capaz de encher a cabeça de caraminholas sem razão de ser.
E lá se vão dois jovens para a reeducação. Eles conhecem uma costureirinha de uma aldeia vizinha, roubam uma mala com livros proibidos e passam a encher as noites da moça com as tramas de Balzac. É uma história sobre amor e literatura também. E sobre livros que mudam as nossas vidas e fazem com que tomemos atitudes inesperadas.
Fiquei a tarde inteira com ele entre os braços. Não saí de casa, mas viajei por terras distantes.
Quanto aos rumos da minha vida, nada posso dizer. Mas Balzac e a costureirinha chinesa mudaram o meu dia.
Saudades...
Até,
M.

quarta-feira, agosto 03, 2005

Querido F.,

Alberto passou a chamar a Juba de Jujuba e eu fiquei irritada. Jujuba é um nome infantil, enjoativo de tão doce. E Juba tem uma inspiração anos 80, Armação Ilimitada, aventuras praianas e liberdade.
Ele comprou um enorme sapo de cerâmica com um rasgo na barriga de onde sai uma planta daquelas de água. Decorou uma das paredes da sala com o enfeite. Fiquei irritada. Primeiro porque o enfeite é horrendo e, depois, porque a sala é minha, ora bola.
Alberto chega na minha casa e a primeira coisa que faz é largar os sapatos sujos de terra na porta do quarto, não sem antes deixar um caminho escuro pelos cômodos.
Alberto cortou os cabelos rente à cabeça, deixando um topetinho um pouco mais longo na frente. Irritada. Quantos anos ele pensa que tem?
Alberto acabou de me chamar. Humpf...
Até,
M.

terça-feira, julho 26, 2005

Querido F.,

Hoje sonhei com você novamente. Estávamos andando em Petrópolis, passando pela casa do Santos Dummont, vindo da faculdade. E a gente ria, ria e ria tão alto que todo mundo que passava olhava em nossa direção. Estava frio e nós seguimos caminhando pelas ruas gêmeas, paralelas, arborizadas. E, de repente, estávamos em Paris, mas ainda éramos jovens e você ainda ria. Um barco daquele de turistas cruzou pela gente e algumas pessoas levantaram o braço e acenaram para nós. Ficamos dando adeus, esperando eles se distanciarem, até que as fisionomias ficassem embaralhadas.
Acordei e caminhei até a janela. Estava frio no Rio também. Alberto continuava dormindo no meu quarto. Agora, ele resolveu passar mais dias aqui em casa, aumentando gradativamente a convivência. Olhei para baixo e tive a impressão de que as pessoas que passavam, encolhidas, sérias, sentiam o mesmo que eu.
Estou com saudades F...
Como anda Paris?
Até,
M.

quinta-feira, maio 26, 2005

Querido F.,

O tempo passa, o tempo voa... Como andam as coisas por ai? Eu estou solteira novamente, deixei meu apartamento e arrumei uma nova fonte de renda. E ja estou com o coraçao cheio e apartamento novo. Quanto aos amores, vou deixar para contar as historias numa proxima vez, porque voce sabe como eu sou cheia de supertiçoes. Nada de numero 13 (agora acrescentei o quatro a lista), de passar embaixo de escadas ou pular aquelas macumbas cheias de farofa no meio dos cruzamentos. DEixa a coisa se firmar. Quanto a fonte de renda, estou agora fazendo umas materinhas de viagens pra uma revista especializada. Paga pouco, mas ta divertido e grana e sempre grana, nao da pra desprezar. E estou morando agora na Barao de Ipanema, num predio la pro finzinho da rua. E bem mais tranquilo. EStou adorando.
Bem... mas nem tudo mudou. Estou eu aqui, mais uma vez, escrevendo sem acentos.
Alguem me ensina, por favor, a configurar este teclado? Acho que vou chamar o porteiro...
Ate,
M.

quarta-feira, março 16, 2005

Querido F.,

Há tempos não escrevo... Confesso que estava com preguiça e que a vida andava boa, sem sobressaltos, caminhando vagarosa e gostosa. Mas hoje fiquei com vontade de abrir a boca, pegar um lápis, sentar no computador e te escrever uma carta.
Minha vizinha pulou da janela. Na verdade, nunca tinha visto seu rosto antes. Só vi hoje, de longe. Uma forma largada no chão do play, com uma mancha escura em volta da cabeça. Parece velha, uma senhora pelos cabelos prateado. Fiquei achando que devia ter escorregado, que olhava entretida uma lagarta do lado de fora do vidro, quis tocá-la, pegar entre os dedos e acabou escorregando pela janela.
A filha de minha prima estava aqui em casa. Assistiu ao rebuliço e quis saber da mãe o que tinha acontecido. Cecília explicou que uma moça de um andar de cima tinha feito uma viagem. Viagem curta. Do sétimo andar até o térreo. O que passa na cabeça de uma pessoa durante estes segundos tão fugazes. O vento correndo solto pelos cabelos. O corpo voando pela janela. Uma sensação de liberdade momentânea. Talvez estivesse rindo. Tenha batido no chão com um sorriso na boca. Talvez tenha se arrependido. Tentou segurar algum parapeito com as unhas, mas o corpo seguiu decidido seu caminho até o chão.
Foi. Acabou. Nada.
Minha vizinha se suicidou. E isto é o suficiente. Não preciso dizer mais nada.

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Querido F.,

Abri a janela hoje de manhã e o dia veio abafado. A brisa deixou de correr. Procurei bem fundo no peito e não encontrei mais nada lá dentro. Não tenho certeza absoluta, nunca temos, mas meu corpo pareceu limpo, liso, oco por dentro.
As obras na casa do Alberto se estenderam um pouco mais. Ele resolveu fazer uma pequena reforma lá dentro. Trouxe uma mala grande, bolsas e mais bolsas cheia de papéis, livros, agenda. E eu me peguei remexendo em seus papéis. Queria saber. Dar conta de tudo. Saber todos os passos, tudo o que se passa dentro do peito. Ter a certeza de que ele me ama. Saber o que ele sente.
Admito que procurei, em meio aos papéis, cartas, bilhetes e o que fosse da ex-mulher, de ex-namoradas, de ex-casos. Quero saber de tudo. O que aconteceu. As mulheres que ele amou e quanto amou. Se foi mais ou melhor do que é comigo.

Quero saber se, em alguns momentos, deseja outras pela rua. Se tem casos mal resolvidos, lembranças de um passado que gostaria de manter durante o presente. Quero um homem transparente ao meu lado, decodificado. Porque o contrário disso parece inadmissível. Porque precisa ser só eu. A única. A mais amada. Uma relação completa.
E a minha analista acha que eu ando procurando um motivo para acabar com esta relação. Porque se eu souber que ele pensou numa mulher que conheceu, lembrou de leve um caso do passado, depois do café da manhã, de termos feito sexo ou da novela das oito, vou ter que terminar. E isso vai acontecer. Porque não é possível ter uma pessoa por completo, por inteiro. E talvez eu faça isso só para sacudir o que sinto aqui dentro. Porque é melhor sentir ciúmes do que não sentir absolutamente nada. Ou talvez porque eu precise saber que ele é desejado por outras para ver que tem valor.
Será que o amor é isso? Uma coisa que inventamos depois de assistir à novela das sete? É tudo um dia após o outro, com um ar morno e denso, sem vento? Uma brisa parada envolvendo tudo...

quinta-feira, janeiro 27, 2005

Querido F.,

Eu e Alberto adiamos a viagem para a próxima semana. É que aqui no Rio não pára de chover, me fez lembrar da minha infância e de como eu gostava de ficar em casa em dias assim, comendo brigadeiro de colher e assistindo a filmes pela televisão com a minha mãe. A sorte da aposentadoria é esta: poder voltar aos hábitos da infância sem culpas, porque eu já trabalhei a vida inteira mesmo. O azar é que se chega nela já lá pro meio da casa dos enta e o brigadeiro não é gasto numa corridinha apressada até a cozinha, fica acumulado em pregas em volta da barriga. Troquei ele por um pote de iogurte light e me tranquei no quarto para assistir a um vídeo que peguei na locadora. Sim, ainda resisto aos DVDs. Ignoro todos os extras e entrevistas com diretores e atores. Gosto de sentar no sofá com o cobertor cobrindo a pontinha dos pés, fingindo que está frio, e ouvir o reconfortante barulho da fita rodando. É isso mesmo, F. Sou uma senhora e resisto às mudanças.
Me tranquei no quarto porque Alberto tomou conta da sala. A casa dele está pintando e ele veio com mala e tudo passar uns dias aqui. A idéia era que estivéssemos em Angra, mas São Pedro quis assim. E chegou largando sapatos, que Juba faz questão de catar com a boca, como se fossem seus brinquedos. E o filho mais novo veio visitar. E, de repente, me senti numa casa com um homem adulto e um adolescente e é como se eu fosse a hóspede. Preciso aprender a dividir. Hoje, tive saudade da solidão.
Até,
M.

sábado, janeiro 22, 2005

Querido F.,

Ganhei estrelinhas de presente de um mês de namoro. Lindas estrelinhas de chocolate, embaladas com papel colorido. Não é a coisa mais adolescente do mundo? E a mais deliciosa, e romântica e linda? Amei. Juba também. Comeu uma meia dúzia delas, apesar de o veterinário ter proibido qualquer tipo de doce para a minha cachorrinha. Mas era dia de festa...
Ah, vamos todos (Eu, Alberto e Juba) passar uns dias em Ilha Grande, na Praia de Palmas. Mando notícias de lá, se possível...
Até,
M.

sexta-feira, janeiro 21, 2005

Querido F.,

Segui seu conselho e falei sobre este meu lado voyeur de mim mesma na análise. Carmem, sempre tão calada, abriu a boca para uma observação simples: as pessoas com estima alta costumam se sentir bem em situações amorosas. Se entregam sem críticas, se achando merecedoras de carinho e amor. Quem tem a estima no pé acaba vendo um lado ridículo em toda a situação. É como se no fundo você achasse que não merece viver nada daquilo. Foi como engolir um caroço de ameixa à seco. Ela deve ter razão. Se eu cortar a unha do pé muito rente acho que perco minha auto-estima, de tão lá embaixo que está.
Saí de lá e entrei numa loja para comprar uma lingerie nova. Queria me sentir desejada, merecedora de uma noite de amor com o namorado, coisa simples, para qualquer mortal. Meu erro foi chegar em casa e experimentar a peça em frente ao espelho. Juro que era um conjunto lindo, de sonho, que nunca na vida eu tinha tido. Todo feito de uma renda finíssima, com um lacinho delicado entre os seios. Mas as coxas rechonchudas, a barriga com pregas e os braços redondos chamam mais atenção do que qualquer sutiã e calcinha. Não consegui olhar pra mais nada a não ser o excesso de gordura. Agora é que perdi ela de vez. Talvez o Vigilantes me salve.

segunda-feira, janeiro 17, 2005

Querido F.,

Eu tenho esta mania de me olhar de fora. Não consigo aproveitar os momentos, porque estou sempre observando cada coisa que faço pelo lado de fora, como se estivesse olhando um filme em que estou atuando. E meu olhar é sempre crítico, procura pelos defeitos. Por mais que eu tente me esquecer nos braços do Alberto, por exemplo, me pego sempre com um olho aberto e outro fechado. E tudo fica parecendo inapropriado. Me vejo velha para beijos, abraços, sexo. Mas me sinto jovem durante os beijos, abraços e sexo. Tento desligar o olho vigilante, mas ele resiste, cada vez mais crítico, implacável. Tenho vontade de transar com as luzes apagadas, embaixo das cobertas. Me escondendo de mim mesma. Mas resisto, não me entrego. Na minha luta, tento ignorar as rugas, as gordurinhas que os anos e os doces consumidos em todos estes anos acumularam em volta da minha cintura, e acendo a luz principal e finjo que não vejo meu reflexo passeando pelo espelho que tenho em frente à cama. Na primeira vez que o alberto pisou na minha casa, veio afoito, passando as mãos pelo meu corpo. Me senti viva, cheia de desejo. E me senti sem graça, me vendo de fora sentada no sofá, velha para tudo aquilo. Talvez você ache que este papo todo deveria ficar guardado para meus encontros com minha analista. Mas eu fico achando que não sou só eu que tenho uma espiã dentro de mim. Enfim, quis dividir com você a experiência.
Mil beijos, querido.
Até,
M.

quinta-feira, janeiro 06, 2005

Querido F.,

Sei que eu dei uma sumida e você deve estar se perguntando o que foi que aconteceu. Confesso que me deu preguiça de ficar descrevendo desta vez tudo o que eu fiz em Nova York, porque lá é sempre aquela correria gostosa, mil lugares pra ir, mil coisas para ver e uma andança que toma conta do dia todo. E, depois, porque o que aconteceu comigo no aeroporto apagou a importância de todo o resto.
Hoje em dia eu sempre fico tensa quando viajo para os Estados Unidos. Por causa desta paranóia que eles têm depois dos atentados. Mandam você tirar o sapato, vasculham cada bolsinho atrás de tesourinhas de unha e mortíferos alicates. Pois eu estava era pensando nisso: se tinha alguma coisa na mala que pudesse ser vista por eles como uma arma. Não curti os momentos de espera, como normalmente. Não comprei revistas. Não fui tomar café e observar as pessoas arrastando as malas pelos corredores.
Conheci o Alberto já dentro do avião. Estava sentado do meu lado, mora no Rio e, o melhor de tudo, em Copacabana também. Ele tem um filho já adulto e foi pra Nova York justamente visitar o menino. Foi uma viagem curta. Pelo menos, foi assim que senti. Ficamos conversando e no final estávamos nos beijando em pleno vôo. Achei que já tinha passado da idade destes encontros amorosos, mas, naquela hora, esqueci de todos estes meus preconceitos. Acho que estamos namorando... Estou feliz.
Feliz 2005, querido! Como foram as comemorações por aí!
beijos, com carinho,
M.