Os textos desta página são cartas que M. escreve para um amigo que (acho) mora na Europa. Todos os dia de manhã, ela deposita um envelope embaixo da minha porta. Depois de encher as latas do condomínio de bolos de papel, desisti, e resolvi publicar algumas por aqui. Assim, quem sabe, podem algum dia atingir o seu destinatário... Renata Magdaleno
domingo, setembro 28, 2008
E fiquei com o papel numa das mãos e o envelope rasgado na outra, sem saber o que fazer com os dois. Eu que já me sentia tão dona de todas elas e, de uns tempos pra cá, já as abria como se tivessem chegado pra mim, como quem abre um envelope de figurinhas comprado na banca, ansiosa e apressada. Eu que vinha lendo os textos e comentando com o Fernando os engraçados e curiosos e colando no quadro de cortiça da cozinha os que mais me agradavam, criando teorias que dessem sentido para o conjunto. Foi só nesse momento que me dei conta: “Estamos lendo a correspondência de outra pessoa!”
E essa era uma carta de amor. E com o papel nas mãos eu tinha certeza de que, agora, descolada de todas as outras, fora do seu envelope de origem, nunca mais acharia o seu caminho. Palavras de amor que ficaram paradas no meio. Escritas de forma apaixonada e embaralhada, com tanto sentimento que nem se entendia direito. Senti uma vergonha profunda. Fernando me olhava do canto, quieto, imóvel, com a mão apoiada na boca e os olhos claros que quase nem piscavam.
Estendi o papel sem muita convicção e foi nesse momento que ele abaixou a nunca e ficou estudando as letras que tanto tinham me perturbado. Foi quando notei que a sua pele era branca que só, mas ao mesmo tempo vinha manchada, pequenos pontos cor de ferrugem. Foi quando vi onde os seus cabelos nasciam e que a gola da blusa fazia uma volta, caindo pelo pescoço. E que as suas mãos tinham veias saltadas e dedos grossos e fortes, mas que seguravam o papel de forma gentil. Pela postura curvada pra frente e toda a atenção que dedicava, senti que ele se importava.
quarta-feira, setembro 24, 2008
e se for a felicidade...
Descobri que o porteiro vem guardando os envelopes destinados à vizinha em cima das estantes onde fica a correspondência do condomínio. A quantidade começou a ficar tão grande, que ele passou a deixar tudo por cima do móvel. Roubei alguns. Ou melhor, peguei emprestado. Vou devolver todos bem fechados dentro de uns dias.
O primeiro que eu abri vinha com um texto estranho, descrevendo uma manhã na beira de uma piscina. A história vinha escrita em caneta preta, com uma caligrafia tão forte que quase chegava a furar o papel. O segundo vinha como uma tira de quadrinhos, esta abaixo.

sexta-feira, setembro 05, 2008
Uma manhã de exercícios na piscina
Era um exercício de respiração. Ele subia e descia, fazendo um bico engraçado com a boca toda vez que levantava da água. O sol estava fraco e talvez sentisse frio. Se a friagem incomodasse, teria levantado e corrido para a toalha aos saltinhos. Mas continuava lá. Trinta e um, trinta e dois...
_ Chega perto da borda?
Fui andando calmamente, mas ele tinha pressa. Alguma coisa tinha urgência de ser feita. Quando cheguei, passou as instruções.
_ Vou ficar embaixo d’água e você liga o cronometro logo que eu descer.
_ Sei. É para medir o tempo que consegue ficar sem respirar?
_ Isso.
Abriu a boca o mais que pôde e puxou o ar para dentro com força. Um, dois, três.... Foi. A cabeça embaixo d’água, o corpo boiando e eu lá, olhando os números no cronometro. Um minuto, dois... Fiquei preocupada e toquei numa parte do seu corpo. Recebi um safanão de volta. Estava vivo. Dois e meio, três... Repeti o gesto sem me preocupar com humores. Novo soquinho. Vivo. Quatro, quatro e meio...
Ele subiu abrindo a boca ao máximo.
_ Quanto foi?
_ Quatro e meio.
Não falou nada. Mas apareceu um meio sorriso no rosto e senti que o peito estufava de orgulho.
_ Tenho que chegar até cinco.
E lá ficou. Levantando e subindo. Minha função tinha acabado e voltei para a cadeira. Mas e se ele se machucar na piscina? E se o frio deixá-lo resfriado? E achava que estava lindo lá dentro. O cabelo grudado na testa e o biquinho engraçado aprisionando o ar dentro do peito.
_ Já está na hora do almoço.
Ele levantou e foi aos saltinhos buscar a toalha. Se aninhou nos meus braços e cobri sua testa de beijos. Me beijou de volta, na boca. Meu marido.
quarta-feira, setembro 03, 2008
Vi na TV que hoje está fazendo sol
Na porta ao lado, a vizinha sumiu e eu cansei de colar a orelha na parede cada vez que ouvia o trinco da fechadura dando voltas. O namorado famoso não inspira mais matérias nos jornais e os repórteres que subiam as escadas do prédio parecem ter se mudado pra outra parte, pra outra vida, pra outra história. Mas o porteiro fala que os bilhetes ainda chegam. Cartas endereçadas a ela ou a ele. Envelopes vezes com a letra redonda que a moça fazia com lápis, vezes com a dura fôrma de imprensa que ele reforçava com caneta Bic preta. De alguma forma, a vida continua.
